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Saiba por que o habeas corpus coletivo para mulheres é necessário

Por Jacqueline Prado Valles*

Recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal aprovou o pedido de habeas corpus (HC 143641), feito pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (Cadhu), que pedia a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para alguns casos de encarceramento de mulheres. De acordo com a decisão, o instrumento cabe apenas para grávidas, mães de crianças de até 12 anos ou de filhos que possuem algum tipo de deficiência. E como já era esperado, a decisão gerou e recebeu diversos comentários, desde críticas dizendo que o parecer contribuiria com o tráfico de drogas, até elogios sobre como isso ajudaria tanto mãe e criança, quanto o sistema prisional feminino. 

Mas, aproveitando o debate, eu gostaria de levantar o questionamento: diante de todos os problemas do sistema prisional do país e do drama enfrentado pelas mães que têm que permanecer com seu filho na prisão, será que o crime seria realmente o maior beneficiado? 

Como funcionava antes do habeas corpus? 

Apesar da decisão do STF, a possibilidade de cumprir a prisão preventiva em domicílio já existia desde a década de 1980. Acontece que, a lei que permite tal benefício, era aplicada apenas para os chamados casos humanitários. Não existe uma definição correta sobre o que é ou não é um caso humanitário, portanto sua interpretação fica à critério do juiz de direito. Mas dois exemplos do que pode ser entendido como caso humanitário é o da pessoa que contraiu alguma doença sem cura, como Aids, e precisa tomar um coquetel de remédios indisponíveis nas prisões, ou um idoso que não tem condições de cumprir sua sentença em uma prisão. 

Além disso, desde 2011, com a Lei nº 12.403, presas grávidas e mães podiam cumprir a prisão preventiva em domicílio. E esse tipo de decisão já existia, o empecilho maior era apenas o mesmo argumento que continua sendo usado após a aprovação do habeas corpus pelo STF: “não é porque ela está grávida, ou já é mãe, que pode ter esse benefício”. 

É importante lembrar que o debate sobre a prisão domiciliar para mulheres ganhou corpo quando o ministro Gilmar Mendes concedeu o benefício para Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que foi acusada a 18 anos de prisão por associação criminosa e lavagem de dinheiro. No caso de Adriana, o benefício se aplica porque seu filho mais novo tem 11 anos de idade.  

Mas, ao contrário do que se imagina, essa não é uma decisão com distinção de classes sociais. Eu mesma já peguei, e presenciei, muitos casos em que mulheres mais pobres tiveram o benefício. 

O que muda com a aprovação do habeas corpus coletivo 

Deve ficar claro que o habeas corpus coletivo foi concedido pensando muito mais na criança do que própria e unicamente na mãe. Tanto que, para obtenção do benefício, além de se encaixar nas regras já mencionadas, a mulher não pode ser indiciada por: 

  • Violência ou grave ameaça 
  • Crimes cometidos contra seus descendentes 
  • Casos excepcionalíssimos (que ficam a critério do juiz) 

Existe um, digamos, “drama carcerário social” muito grande em nosso país: o das mulheres que dão à luz nas prisões e/ou são obrigadas a deixar seus filhos logo nos primeiros anos de vida dele. E o maior prejudicado nisso tudo é a criança que, ou permanece em um ambiente insalubre logo em seus primeiros meses de vida, ou tem que ficar longe da mãe.  

Portanto, volto a repetir: o habeas corpus coletivo foi concedido pensando muito mais na criança do que na pura liberdade da mãe. 

Eu sou a favor da decisão, mas também acho que o tema não precisava chegar ao STF para ser levado em consideração. Para isso, bastava que os juízes de primeira instância cumprissem a lei e evitassem todo o desgaste social e familiar resultado da prisão de uma mulher grávida ou mãe de criança.

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A redução da maioridade penal é a melhor solução para combater a criminalidade entre jovens?

Por Jacqueline Prado Valles*

 

A redução da maioridade penal é um dos assuntos mais polêmicos de nossa sociedade. Um verdadeiro Fla x Flu: de um lado, a parcela que acredita que jovem não é criança e, portanto, deve responder pelos seus atos; do outro, o setor que diz que prender não é a melhor solução, e que o Estado deve dar o suporte necessário para a restruturação e reinserção do jovem na sociedade. Ambos defendem ferrenhamente seus pontos de vista e, para isso, usam diversos argumentos para sustentar suas opiniões. Alguns dos utilizados pelos que defendem a redução da maioridade penal, são:

  • Jovens de 16 e 17 anos já têm discernimento para responder pelos seus atos
  • Jovens cometem mais crimes sabendo que não vão para a prisão
  • As medidas do ECA são insuficientes
  • Muitos países desenvolvidos têm a maioridade penal abaixo dos 18 anos de idade

Já o grupo contra a redução da maioridade penal coloca que:

  • Educação é mais eficiente do que a punição
  • Nosso modelo prisional é ineficaz e punitivo, não reformador
  • Prender menores agrava ainda mais a crise no sistema prisional
  • A redução afetaria mais jovens socialmente vulneráveis

O assunto é sério e eu queria trazer algumas questões para o debate: prender o jovem é a melhor solução para diminuir o número de delitos cometido por menores de idade? Se sim, como tal medida seria possível em um sistema carcerário que está em colapso, como o nosso? Se não, é correto não penalizar um jovem que cometeu um crime hediondo, por exemplo?

Redução da maioridade penal: prender não é a melhor solução

Na verdade, talvez essa seja uma das maiores negligências que podemos cometer contra a nossa sociedade. Reduzir a maioridade penal para 16 anos (ou 14, como alguns querem) não só não resolverá o problema da criminalidade durante a juventude, como levará nosso sistema prisional à falência total! Mais do que isso: prender o jovem é entregá-lo para o crime organizado!

Nosso sistema carcerário é punitivo e não reformador. A melhor maneira de diminuir o índice de criminalidade é reeducando o jovem e dando a estrutura necessária para convívio em sociedade. Entretanto, concordo que um jovem que mata um pai de família, por exemplo, sabe muito bem o que está fazendo, e deve responder por isso.

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que tem como objetivo principal proteger integralmente todos os menores de 18 anos, inclui algumas medidas socioprotetivas. Exemplo disso é a verificação da vida social de um infrator menor de idade: se ele estuda, se tem uma moradia, se faz parte de algum programa de auxílio do governo etc. Também conta com medidas socioeducativas, que seriam formas de reprimir um ato criminoso. São elas:

  • Advertência: aviso verbal, e posteriormente assinado, com o propósito de alertar o adolescente e seus responsáveis para os riscos do envolvimento com o ato infracional
  • Obrigação de reparar o dano: ressarcimento do dano ou alguma outra forma que compense o prejuízo da vítima causado pelo adolescente
  • Prestação de serviços à comunidade: prestação de serviços a entidades assistenciais como hospitais e escolas, por exemplo, por um período máximo de 6 meses
  • Liberdade assistida: na qual o adolescente permanece livre, mas com o dever de se apresentar à justiça, junto de seu responsável, sempre que solicitado pela instituição
  • Regime de semiliberdade: nesse caso, o jovem é obrigado a estudar e/ou trabalhar durante o dia e, de noite, deve recolher-se a uma entidade de atendimento especializada
  • Internação: o jovem fica recluso da sociedade, internado na Fundação CASA, por 3 anos, ou até completar 21 anos de idade

Acontece que essas medidas do ECA, apesar de serem cumpridas, não são suficientes para reeducar e reformar todos os jovens que comentem atos infracionais.

Propostas alternativas

Como deve ter percebido, não sou a favor da prisão de um jovem com idade inferior a 18 anos, mas também não concordo que um adolescente que comete um crime hediondo não seja penalizado de forma correta. Por isso, ao meu ver, uma terceira proposta se sobressai a essas duas. É o projeto chamado Regime Especial de Atendimento, proposto pelo governador de São Paulo Geraldo Alckmin.

A proposta desse projeto é que não se mude a lei, reduzindo a maioridade penal, mas que se altere o ECA. Sendo assim, em vez de ficar até, no máximo, completar 21 anos de idade, o adolescente infrator pode ficar até 8 anos internado, se o ato infracional for equivalente a crimes hediondos.

Vejo essa medida como uma boa alternativa, uma vez que responsabiliza o jovem que comete crimes mais graves e o trata com maior rigor, além de evitar a alteração da Constituição Federal.

 

*Artigo escrito por Jacqueline do Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados 

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Mudanças na lei 10.826/2003 podem agravar nível de violência no país

Por Jacqueline Prado Valles*

 

Quatorze anos após a sanção do Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/2003), o Brasil volta a discutir a necessidade da legalização do porte de armas para civis se defenderem. A novidade é que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou relatório que sugere a revogação do Estatuto. No meio de todo o debate, diversos dados e pesquisas corroboram para argumentos de ambos os lados. Tanto daqueles que são a favor, como daqueles que são contra a legalização do porte de armas. 

Eu gostaria de levar algumas questões para esse debate: será que a população tem maturidade suficiente para uma decisão dessas? “Entregar” essa responsabilidade de defesa nas mãos da sociedade não é um grande erro. Além disso, não seria um atestado de falência do Estado no que se refere à segurança pública? 

O que diz a lei 10.826/2003 

O Estatuto do Desarmamento proíbe o porte de arma por civis, exceto quando há necessidade comprovada para defesa pessoal. Para tal, o requerente precisa apresentar uma série de documentos à Polícia Federal. Entre eles:  

  • Declaração escritaexpondo os fatos e circunstâncias que justifiquem o pedido de aquisição de arma de fogo, demonstrando efetiva necessidade 
  • Comprovar idoneidade, apresentando certidões negativas criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral
  • Comprovar que não está respondendo a inquérito policial ou processo criminal (vide exemplo)
  • Comprovação de ocupação profissional lícita
  • Aptidão psicológica, que deverá ser atestada por psicólogo credenciado pela Polícia Federal. Confira a lista de psicólogos credenciadosaqui 
  • Capacidade técnica, que deverá ser atestada por instrutor de tiro credenciado pela Polícia Federal;
  • Entregar o requerimento de autorização para aquisição de arma de fogo preenchido. Disponível aqui. 
  • Pagar taxa de emissão de certificado de registro de arma de fogo (média R$ 60), caso seja deferido o pedido

Mesmo após a sanção da lei 10.826/2003, o índice de mortes causadas por armas de fogo não diminuiu drasticamente como esperava-se. Em 2003, o Brasil tinha cerca de 36,1 assassinatos por 100 mil habitantes. Atualmente, a taxa é de 29,9 mortes por 100.000 habitantes.  

São justamente números como esse que têm corroborado com a pauta de liberação da posse e do porte de armas e com o novo Estatuto de Controle de Armas, que, dentre outras mudanças, propõe: registro permanente da arma de fogo, que o requerente não possua condenação por crime doloso e elimina a comprovação da necessidade efetiva para o porte. 

Argumentos contra e a favor da liberação 

Diversos são os argumentos, dados e estudos contra e a favor da liberação do porte de armas de fogo. Abaixo, alguns deles: 

Contra 

  • Ter uma armaé sempre um risco à vida 
  • Com menosarmas, a taxa de homicídios cai 
  • As armas legaisacabam nas mãos erradas 
  • Aumentam as chances de consequências fatais da reação a assaltos
  • Armas dentro de casa aumentam a chance de ferir um familiar por acidenteou conflito doméstico 

A favor 

  • Os índices decriminalidade seguem altos mesmo após a proibição em 2003 
  • O cidadãotem direito de se defender 
  • Com treinamento, evita-se acidentes dentro de casa
  • A criminalidade aumentou,pois o ladrão sabe que estamos desarmados 
  • Mortes portráfico tendem a diminuir 

Arma não defende ninguém 

Ao longo da minha carreira, eu atendi clientes que cometeram algum tipo de delito utilizando armas de fogo. Nesse tempo, uma coisa ficou clara: arma não defende ninguém. Eu não consigo visualizar nenhum benefício para a sociedade caso a posse e o porte de armas sejam liberados. Tudo bem que é necessário comprovar habilidade técnica e preparo psicológico para obter uma arma (que, convenhamos, é o mínimo), mas a realidade é diferente. Mesmo com os requisitos, o cidadão civil nunca terá o preparo e maturidade para usar a arma da forma correta. A probabilidade de um desfecho com vítimas fatais em casos de assalto, por exemplo, é muito grande! 

Também ficou claro que a grande maioria dos incidentes com armas de fogo são causados pela perda do controle psicológico. Durante uma discussão ou briga de bar, aquele que portava uma arma sentiu-se “atacado”, muitas vezes sem nenhum contato físico, e acabou utilizando a arma para se proteger. Tenho convicção de que, com a liberação, voltaremos ao tempo em que a violência em alguns bairros era maior do que as regiões que estavam em guerra. Em 1996, por exemplo, quando a ONU considerou a violência do Jardim Ângela maior do que a guerra da Iugoslávia. 

Por fim, eu não sou a favor das mudanças da lei 10.826/2003. Até porque, a segurança pública é um dever do estado, e não do cidadão civil.

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Como a PEC 181 trouxe à tona a questão da criminalização do aborto?

Por Jacqueline Prado Valles*

 

Há algumas semanas, vimos que uma série de protestos foram realizados por mulheres de todo o Brasil contra a aprovação da PEC 181, que aconteceu no último dia 8 pela comissão especial da Câmara dos Deputados. O principal motivo para os atos é que, com as alterações propostas pela comissão, falou-se muito que o aborto poderia ser proibido de maneira generalizada, apesar da Comissão não ter concluído para esse entendimento, a proposta de alteração se faz mais abrangente afetando todos os métodos anticoncepcionais, pois a proteção à vida seria desde da concepção.

A aprovação do texto com tal mudança tomou grandes proporções por dois motivos principais: primeiro, o aborto por si só é um dos maiores tabus em nossa sociedade. Logo, qualquer alteração na lei que envolva essa questão, terá uma grande repercussão. O outro motivo é que, por incrível que pareça, de nada falava o texto inicial da PEC 181 sobre o aborto. A proposta inicial de emenda, de autoria do senador Aécio Neves, propunha a ampliação da licença maternidade para mães de prematuros, de acordo com o número de dias em que o bebê ficar internado, até o limite total de 240 dias. Assim, o desencontro de informações formou uma grande confusão de opiniões e falsos conceitos.

Tal mudança acabou rendendo à emenda o nome de PEC “Cavalo de Tróia”.

O que diz a lei aos casos de aborto antes da PEC 181

Segundo o código penal , há duas maneiras de realizar o aborto sem ocorrer crime: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, e quando a gravidez foi resultado de um estupro. Há, ainda, uma terceira situação onde o aborto é autorizado perante o STF : nos casos em que o feto apresenta má formação no tubo neural. Nessas três ocasiões, a gestante tem a opção de realizar, ou não, o aborto. Caso decida interromper a vida intrauterina, o Estado oferece a opção de realização do procedimento através do Sistema Único de Saúde.

Aborto: uma questão a ser debatida

Como já dito, o aborto é um dos maiores tabus da nossa sociedade. Até mais do que questões como a legalização das drogas. É exatamente por esse motivo que se faz necessário um debate com todos os setores da sociedade – políticos, religiosos, ateus, médicos, ONGs e etc -, antes de qualquer tomada de decisão. A não participação da sociedade, no meu ponto de vista, é o maior erro cometido pelos parlamentares da comissão especial que aprovaram o novo texto da PEC 181.

Apesar do deputado relator Jorge Tadeu Mudaren afirmar, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, que a PEC foi discutida durante 6 meses, penso que, no mínimo, deveria ter sido feita uma divulgação maior sobre as audiências públicas de debate, assim como ocorreu em 2012, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) convocou toda a população para discutir a autorização do aborto para os casos de anencefalia. Isso vale tanto para as propostas que visam a legalização, como para aquelas que pretendem criminalizar, parcial ou totalmente, a interrupção da gravidez.

Até mesmo porque já existem algumas outras propostas alternativas ante a proibição ou legalização total do aborto, como o desenvolvimento de políticas de redução de danos, aliada as ações de difusão de alternativas ao aborto; informações sobre os métodos utilizados e seus riscos; além da possibilidade de realização de consultas com profissionais de diferentes áreas junto às mulheres. Ou, então, a criação e publicidade de um programa de adoção de recém-nascidos, no qual a gestante que não deseja permanecer com a criança possa ingressar nesse programa de adoção para aqueles que desejam acompanhar e pleitear judicialmente a adoção desde a gestação, evitando assim, a maior parte dos abortos clandestinos que a mulheres acabam cometendo, em razão de não suportarem o nascimento de uma criança não planejada.

A questão principal é que não podemos simplesmente ignorar os dados de saúde pública relacionados os abortos clandestinos e a grande mortalidade dessas mulheres, nem desrespeitar a opinião de grupos conservadores da nossa sociedade. A única e melhor forma de chegarmos a uma conclusão que agrade a todos (ou à maioria) é através de um debate aberto e extremamente esclarecedor para que todos os grupos sociais possam entender e argumentar suas posições.

*Artigo escrito por Jacqueline do Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados

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Por que as penas para crimes econômicos aumentaram sendo que a lei continua a mesma?

Por Jacqueline Prado Valles*

 

Desde 1986, com a sanção da lei nº 7492 pelo então Presidente da República, José Sarney, o Brasil tem criado normas que tipificam e qualificam os crimes econômicos. Desde então, diversas leis foram criadas para combater as fraudes contra o sistema econômico nacional, como:

Acontece que esses códigos não passaram por mudanças desde que foram sancionados. Entretanto, têm sido cada vez mais comum condenações de crimes econômicos com penas elevadas. É justamente essa a questão: afinal, porque as penas contra os crimes econômicos têm sido tão altas, sendo que não houve alteração nas leis?

Crimes econômicos no passado

Para entendermos completamente o porquê dessas mudanças, é necessário analisarmos como funcionava o processo de julgamento de crimes econômicos no passado (não tão distante).

A pena para esses crimes sempre foi, em média, de 3 anos, a mínima, e 10 anos, a máxima. Acontece que, após denúncia e investigação, para que o juiz condenasse o réu com pena acima da mínima, é necessário analisar, cuidadosamente, questões antecedentes e fora do objeto de denúncia do réu, ou seja, analisava-se seu comportamento social, sua personalidade, antecedentes e claro, as circunstâncias que o levaram a cometer tal crime. Não sendo o crime econômico um ato hediondo e pelo fato do transgressor, muitas vezes, ter bons antecedentes, condenava-se com pena mínima e o fato do réu ser primário o “levava” para cumprimento da pena em regime aberto.

Outra situação muito comum é que, durante todo o desenrolar do julgamento, com recursos e demais instrumentos, a pena acabava por prescrever, fazendo com que o réu, muitas vezes, não chegasse nem a pisar o pé na prisão.

Porque e como mudou

Recentemente vimos que o judiciário tem condenado com penas muito maiores do que em casos anteriores para o mesmo crime. Exemplos disso são o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que foi condenado a 45 anos de prisão, e o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, que viu sua pena ir de 10 para 24 anos.

Um dos fatos que mais corroboraram para que as penas aumentassem tanto e para que réus de crimes econômicos fossem realmente presos foi uma decisão do Conselho Nacional de Justiça. Para combater a corrupção e de fato prender os infratores, em meados de 2011, o CNJ decidiu que os crimes contra a administração e fundos públicos deviriam ser julgados até, no máximo, 2013. Dessa forma, não corria-se o risco da pena prescrever sem que o criminoso pagasse pelo seu ato. Além disso, nos casos em que o réu cometeu mais de uma vez a infração, deixou-se de aumentar sua pena para somar todos os atos. Ou seja, aquela pessoa que cometeu 15 vezes o crime de lavagem de dinheiro, por exemplo, não teve sua pena aumentada pela quantidade de vezes que cometeu o crime, a decisão passou a ser a soma da condenação de cada ato.

Mas eu gostaria de ressaltar outros fatores importantes que também colaboraram para tão mudança: a qualidade do poder judiciário, o amadurecimento das leis e da democracia no Brasil e, principalmente, a fiscalização da população.

Diferente de tempos passados, hoje em dia, tanto mídia quanto cidadãos fiscalizam, com muito mais atenção, os poderes e acontecimentos públicos. Não é difícil nos depararmos com conversas sobre crimes econômicos, ou “do colarinho branco”; debates sobre como funcionam os três poderes e o processo de julgamento de um grande crime, e até mesmo as esferas do poder judiciário bem como seus atuantes.

Outra coisa é que, com os holofotes voltados aos trabalhos dos juízes de direitos, juristas em geral, deputados, senadores, e todos do poder público, estes têm buscado trabalhar com mais seriedade e empenho. Claro, isso não quer dizer que antes não trabalhava-se com seriedade, mas é inevitável, quando nosso trabalho está em evidência, sempre buscamos redobrar a atenção em nossas ações.

Toda essa fiscalização por parte da população e da mídia é ótima para o funcionamento correto das instituições, e isso só tem a crescer. Arrisco dizer que não vai demorar muito para que muitas pessoas conheçam a fiscalizar o processo de criação de uma lei até sua outorga.

Mas toda essa clareza e transparência dos atos judiciais colaboram para um processo democrático de direito mais perfeito para toda a sociedade,  acarretando assim,   um respeito maior entre a população e o poder público.

 

*Artigo escrito por Jacqueline do Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados 

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Por que uma mudança na lei de crimes de violência sexual é necessária?

Por Jacqueline Prado Valles*

 

Com os recentes episódios de crimes de estupro e abuso sexual, muito tem se falado sobre a condenação, a impunidade ao transgressor e, até mesmo, sobre a mudança na lei que qualifica o ato. Aproveitando o debate, neste artigo falarei um pouco sobre o que a lei diz sobre o crime de estupro e a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, além de apontar porque deve haver uma mudança na lei. 

Antes, eu gostaria de comentar dois casos distintos que ocorreram recentemente e que exemplificam as diferenças na lei de estupro e na de contravenção penal. Um é o do ex-vereador do município de Jussiape, no estado da Bahia, Adson Muniz Santos**, que foi denunciado por sequestro, roubo, uso de falsos documentos, falsa identidade e, principalmente, por ser autor de uma série de estupros em São Paulo. Segundo reportagem, Adson usava documentos falsos, distintivo de delegado de polícia e uma arma de brinquedo para abordar e obrigar suas vítimas a terem relações sexuais com ele. 

Outro caso, é o do ajudante de pedreiro, Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, que, mesmo tendo cometido o crime outras 15 vezes (e não sendo preso em nenhuma delas), foi solto 24 horas após ter ejaculado em uma mulher dentro de um ônibus em São Paulo 

Claro que, independente do autor, o abuso sexual e o estupro são crimes totalmente intoleráveis, mas o que diferencia esses dois casos de outros é o fato de um dos transgressores ser uma pessoa pública e outro ter cometido o mesmo crime tantas vezes e não ter sido punido. 

O que diz a Lei 

A lei que tipifica o estupro como um crime sofreu alterações em 2009. O texto que definia estupro como o ato de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, agora estabelece que o delito consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Dessa forma, a alteração passa a reconhecer que, não apenas a mulher pode ser a vítima, como o homem também. 

A Contravenções Penais (DECRETO-LEI Nº 3.688/1941), em seu artigo 61, conceitua a importunação ofensiva ao pudor como “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor” tendo como pena “multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”. 

O fator principal necessário para que haja o crime de estupro é o constrangimento, seja ele físico ou psicológico, através de ato libidinoso. Ou seja, os dois casos citados acima se enquadram no delito, mas existe uma diferença fundamental entre eles. Enquanto Adson ameaçava suas vítimas a terem relações sexuais físicas utilizando arma e documentos falsos, Diogo não ameaçou nem encostou em uma das vítimas durante o crime.  

O fato de ameaçar e encostar na vítima (ou não) faz toda diferença uma vez que, caso não haja contato nem ameaça, pode-se entender como uma importunação ofensiva ao pudor, um crime de menor potencial ofensivo que tem como pena a prisão simples ou pagamento de multa. Isso explica porque Diogo foi solto apenas 24 horas após sua prisão e, também, porque dos 127 casos de abuso sexuais ocorridos em trens e metros de São Paulo no primeiro semestre de 2017, apenas um foi considerado estupro. 

Mudança na lei 

Está claro que o estupro é um crime que deve ser intensamente combatido, dos menores aos piores casos, afinal, ele é um dos delitos que mais têm reincidências no Brasil. 

Por existir diferentes “graus” no crime de estupro, é incorreto sentenciar um transgressor que nem sequer encostou na vítima da mesma maneira daquele que a ameaçou e forçou o ato libidinoso físico. Entretanto, penso que é totalmente necessário uma mudança na lei para melhor “classificar”, digamos assim, cada caso ocorrido e punir de forma mais assertiva os atos de contravenção penal, pois é inadmissível que contraventor cometa o crime e não seja punido de forma eficaz 

 

*Artigo escrito por Jacqueline do Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados 

**Até a conclusão do artigo, o caso de Adson ainda não havia sido julgado, entretanto, seus atos tipificam seus crimes como sendo de estupro e não apenas uma contravenção penal. 

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Saiba por que os homens cometem a maioria dos assassinatos no mundo

Fonte: R7.com

As cenas de massacre têm se repetido em várias partes, trazendo a dor e o horror, como no último dia 2, quando, do 32º andar de um hotel, tiros, vindos de armas automáticas, atingiram uma multidão em Las Vegas, deixando 59 mortos. Mais tarde, em meio ao pranto e à indignação da população, não soou como novidade a informação das autoridades de que o autor era Stephen Paddock. Ou melhor, um homem.

O UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), da Nações Unidas, em estudo divulgado em 2014, concluiu que 95% dos assassinatos no mundo são causados por homens, que também são os que mais morrem de forma violenta.

Essa questão de gênero, porém, difere da delicada comparação entre a capacidade dos homens e das mulheres em outros assuntos. Não se trata de machismo ou sexismo. Em relação a crimes, as estatísticas refletem a polêmica questão biológica e padrões culturais, sociológicos e psíquicos. São fatores que, unidos, sempre levaram o sexo masculino a cometer mais barbáries.

Nestes casos extremos, que já têm se tornado rotineiros, o homem se vê em um conflito com ele mesmo. E se debate na ânsia desesperada de saber como, dentro de todos esse fatores, ele irá conseguir lidar com seus limites para o ódio, a raiva, a frustração.

Resolvi, então, ouvir especialistas em três áreas para, por meio dos depoimentos sobre a criminalidade do homem, entendermos um pouco melhor esse fenômeno muito mais masculino da violência. De hoje e sempre.

Guido Palomba – psiquiatra forense

“É uma questão filo-ontogenética. Isso quer dizer que vem da formação da espécie humana dentro do reino animal e do aspecto que diz respeito à gênese e desenvolvimento do indivíduo homem. Na sua gênese o homem é caçador, é violento, é ele que sai para matar os animais, que vai para a guerra.

A questão da testosterona (hormônio mais presente nos homens), competitividade e a pressão para não se sentir deixado para trás também têm seu peso, é um conjunto de fatores, o homem é um ser biológico, psicológico e sócio-cultural.

Em alguns crimes as mulheres já estão se ombreando com os homens, mas em relação a esses crimes bárbaros, tipo serial killler, ainda é o homem a prevalecer. Claro que cometer esse tipo de matança é uma deformação, mas o comportamento agressivo é mais desenvolvido no homem do que na mulher.

Nestes picos a agressividade masculina se exacerba. Na verdade, ela, que é contida pelos freios sociais morais éticos religiosos e de compaixão, deixa de ter esses freios e vem de forma exacerbada contra tudo e contra todos.”

Jacqueline do Prado Valles – criminalista

“O homem tem a natureza um tanto mais violenta do que a mulher. Não que ela não tenha potencial nocivo, mas ela age de maneira mais meticulosa para cometer o crime. O homem é também muito mais emocional do que a mulher no momento da explosão. Com relação aos efeitos, o homem tende a ter o amparo maior da famillia, ele já conta que, caso aconteça algo, a familia vai ficar com ele, e isso em geral acontece.

Já a mulher é o seu próprio amparo e acaba ficando só. Ela não é mais julgada, é mais abandonada, fica mais à própria sorte, isso também é um inibidor. A mulher é responsável por mais pessoas, muitas vezes pelo marido, pelas crianças. Sabe que, se ela faltar, o prejuízo vai ser grande. O homem vai à luta, sabendo que tem alguém para resguardar.

Atirador de Las Vegas usou martelo especial para quebrar as janelas

Hoje em dia se você for para os corredores dos fóruns criminais vai ver muito mais mulheres do que cinco, 10 anos atrás, mas essa mulher está cometendo o crime junto com o homem. Ela é traficante. O homem vai preso e ela fica tomando conta do tráfico fora, tem sido esse o perfil. Faz parte da desenvoltura e empoderamento da muher na sociedade, ela tanto está aprimorando o lado lícito quanto o ilícito.”

Sebastião Aguiar – escritor

“A Arte imita a vida e ela se vale das paixões humanas literais para criar seu próprio argumento, sua história, seu pathos (paixão, sentimentos intensos). São retratados na literatura crimes, como em “Crime e Castigo”, de Dostoievsky, na situação de um homem jovem desesperado, sem saber qual caminho tomar e que comete a atrocidade de assassinar numa velhinha que alugava o quarto para ele. Ela era inofensiva, mas ele faz dessa personagem a fonte do mal e tenta liquidar o mal matando. Não dá muito certo, ele fica torturado pelo remorso.

A literatura policial é vasta neste tipo de situação, geralmente retratando momentos de desespero. Em “O Estrangeiro”, de Albert Camus, um homem acaba assassinando alguém na Argélia, e então perguntam por que ele fez isso. Ele responde: “foi o sol, muito sol”. Quer dizer, não tinha explicação, ele apenas se sentia desorientado e praticou esse ato sem nenhuma necessidade, atribuindo a causa ao desconforto e à irritação.

Muitas maldades acontecem sem uma razão, nem patologia. Mas a pessoa está em uma situação em que se vê fragilizada e reage dessa forma. A literatura reflete isso. Livros, poetas e vários autores acabam também sendo imitados na vida real, como no famoso livro “Os sofrimentos do jovem Werther”, que acaba gerando uma epidemia de suicídio no início dessa época do Romantismo, primeira metade do século 19.”

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Amor materno: protecionismo além da justiça

Por Jacqueline Prado Valles*

 

Com a recente data comemorativa do Dia dos Pais, as emoções familiares ficam ainda mais frescas em nossa memória sentimental. Aproveitando esse gancho, nesse artigo falarei sobre um dos amores mais incondicionais: de pais ou mães. Mas, ao contrário do que propõe a data sazonal, vou tratar em especial do amor materno.

Diferente do artigo anterior, neste não darei característica de um réu, mas de uma mãe capaz de qualquer coisa para proteger seu filho ou filha. Para exemplificar, vou relatar um caso que reflete perfeitamente o grau de protecionismo que uma mãe pode ter com um filho ou filha.

 

Luiza: um caso de extremo amor materno

Para preservar a identidade de minha cliente, aqui a chamarei por Luiza. Mãe de duas meninas, morava com seu marido e as filhas. O marido da filha mais velha, de 23 anos, completava a lista de moradores. Em um dia, supostamente, Luiza e o genro se desentenderam, e a mulher disparou 2 tiros contra o rapaz.

Fui procurada pelo marido de Luiza para assumir a defesa do caso. Ele me contou que a esposa era ré confessa do homicídio, e estava presa há 3 meses em uma penitenciária feminina.

Comecei a visitar Luiza e investigar melhor a situação. Logo notei muitas incoerências naquela história. Até não conseguia dar muitos detalhes da briga com o genro, se perdia em seus próprios relatos. Tudo o que dizia com convicção era: “Fui eu, eu matei meu genro”. A cliente alegava legitima defesa, mas não havia uma história que sustentasse o pedido. Ela estava, nitidamente, mentindo.

Outro fato que me intrigou durante a investigação foi o nome da filha mais velha – a viúva – não aparecer entre as visitas permitidas pela acusada. Quando questionei esse ponto, esposa e marido diziam que a filha, além de muito atarefada, estava deprimida. Pediram para que eu não a procurasse. Eu, que não enxergava em Luiza uma assassina, começava a suspeitar de estar diante de um caso em que o amor materno tenha levado uma mãe a atitudes extremas, como assumir a culpa de um crime que não cometeu.

A explicação de Luiza  sobre como pegou a arma do crime também não era nada convincente. Segundo ela, pertencia ao genro, que era vigilante. Ela disse ter pego a arma da cintura do rapaz. Em um primeiro momento, disse que pegou a arma durante a briga. O discurso mudou quando questionei essa possibilidade, já que a força física de um homem de 1,90 cm, estatura aproximada da vítima, era superior à dela. Dessa vez, alegou que ele estava distraído.

Sempre que assumo a defesa de algum crime, principalmente familiar, procuro absorver, ao máximo, o ambiente daquela pessoa. Família, vizinhos, pessoas próximas. Todo mundo é ouvido. Nesse caso, não poderia ser diferente.

Além da família, fui atrás dos vizinhos que ouviram os tiros e chamaram a polícia. Segundo eles, o genro de Luiza, que aqui chamaremos de Alexandre, era um homem que se envolvia com outras mulheres e também conhecido pelo grande consumo de bebidas alcoólicas – o que resultava em frequentes discussões na casa.

 

A defesa

Mesmo com incansáveis investidas para que Luiza dissesse a verdade, a cliente continuava insistindo em uma história pouco provável. O pedido de Legitima Defesa jamais seria aceito pelo júri, pois não havia relatos ou provas para sustentá-lo.

Em um dos últimos encontros antes do julgamento, disse à Luiza que, se assim quisesse, ela poderia alegar Legitima Defesa perante o júri. Eu, no entanto, não usaria dessa defesa, pois era incompatível com a realidade jurídica.

Mesmo diante dos meus argumentos, Luiza se mostrava inflexível. Dizia que confessaria o crime. Como reflexo de seu desespero, alegou que cumpriria o tempo que fosse necessário, ainda que o crime fosse classificado como Homicídio Qualificado Hediondo. Nesse caso, o resultaria seria uma pena de 12 a 18 anos. A acusada chegou a dizer que, se eu não alegasse legitima defesa, preferiria que nada fosse feito.

 

O julgamento

Em clima de extrema tensão, começou o julgamento. Durante seu pronunciamento, o promotor questionou a história apresentada pela acusada. Notando a contradição no discurso da ré, o promotor pediu o encaixamento do crime no Art. 121 § 2º, II no Código Penal, homicídio por motivo fútil.

Chegado o momento da defesa, pedi a absolvição de Luiza, devido à falta de provas que pudessem ir contra as acusações, atestando a possível inocência de minha cliente. Nesse momento, Luiza começou a se exaltar, falar alto, ficar nervosa. Em um ato de desespero, voltou a afirmar que havia cometido o assassinato.

Os integrantes do júri também sentiam que a história de Luiza estava mal contada, e que alguns fatos haviam sido omitidos. Eu, que já desconfiava de que o amor materno de Luiza    estava levando-a a assumir um crime que não havia cometido, percebi que os jurados compartilhavam das minhas suspeitas. Em dado momento, um jurado chegou a questionar o porquê de ela estar se acusando, e a quem estaria protegendo.

Em minha tréplica, aproveitando da dúvida do júri, insisti na absolvição de Luiza, levantando a falta de provas.

 

 

O veredito

Como advogada, eu confio muito nos critérios de decisão dos jurados. Ainda que composto por pessoas sem conhecimentos técnicos de Direito, o júri tem uma grande sabedoria da realidade humana. É sempre possível detectar alguma sensibilidade nas tomadas de decisão. Após a resolução desse caso, tive ainda mais certeza disso. 

Antes do veredito, ao  júri se faz os seguintes questionamentos: a vítima morreu em decorrência do crime? Luiza foi responsável pelo homicídio? Luiza teria assassinado o genro por um motivo fútil? E foi a resposta a esta última pergunta que fez a diferença no julgamento: não. Na decisão dos jurados, não houve discussão ou futilidade, contradizendo a história contada por Luiza. Além disso, a decisão ia contra a ideia de que o genro de Luiza teria sido pego de surpresa, também em contrapartida com o relato da ré.

O júri sabia que as alegações de Luiza não eram verdadeiras, mas fizeram a justiça que acreditavam ser plausível. Minha cliente foi condenada por Homicídio Simples, e destinada à pena de 6 anos em regime semiaberto. Uma pena cumprida por deixar seu amor materno se sobressair diante de toda e qualquer circunstância.

 

A verdade por trás do caso

Passado o julgamento, durante o cumprimento do regime semiaberto, Luiza e o marido foram até o meu escritório. Foi nesse momento que minhas suspeitas se confirmaram.

Durante uma discussão com Alexandre, a filha do casal pegou a arma e disparou contra o peito do próprio esposo. Desesperada, ligou para a mãe, que, devido ao seu incondicional amor materno, assumiu a culpa do crime. Luiza teria pedido para a filha esconder a arma em um lugar específico. Para afastar suspeitas, também pediu que a filha saísse de casa. Pouco depois, já na presença da polícia, a mãe chegou, revelando a localização da arma, e assumindo a autoria do crime.

E foi o mesmo amor materno que motivou a mulher a assumir um crime que nunca cometeu, que a levou ao meu escritório naquele dia. Luiza fez um apelo para que não fossem atrás no testemunho da filha, e a deixassem em paz. Eu a tranquilizei, dizendo que, uma vez acusada, o caso estava encerrado, e não seria reaberto para procurar novos culpados.

Só assim aquela mãe pode ir embora e cumprir a pena que lhe foi resignada, revelando um grande alívio por poder proteger a filha.

 

*Artigo escrito por Jacqueline Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados

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Violência contra a mulher: características de um homicídio passional

 

Por Jacqueline Prado Valles*

Como levantei no meu último artigo, em boa parte dos casos de violência contra a mulher que chegam até as autoridades, a agressão parte de pessoas próximas à vítima. O homicídio passional representa uma grande parcela dessas ocorrências, e é sobre ele que falarei neste texto.

 

O homicídio passional e suas características

Diferentemente de outros criminosos, os homicidas passionais assumem a culpa e não tentam disfarçar a autoria do homicídio. Após defender alguns desses casos, notei que essa não é a única peculiaridade desse tipo de homicida. Eles, geralmente, possuem outras características em comum.

Há dois tipos de homicídios passionais: um motivado por vingança e outro por uma mágoa ou chateação muito grande. O que difere um do outro é justamente a motivação que levou a pessoa a cometer o crime. Enquanto o primeiro sente ódio e quer se vingar de uma traição ou separação, o segundo não nutre qualquer sentimento negativo pela vítima. Muito pelo contrário, ele a idolatra e se sente atordoado pela ideia de perdê-la.

Minha experiência de mais de vinte anos como advogada criminalista me permitiu conhecer a fundo inúmeros casos dessas duas naturezas. Neste artigo gostaria de compartilhar um caso específico do segundo tipo de homicídio passional.

Para preservar a identidade de meu cliente, tratarei dele por Alberto.

 

O caso

Alberto tem aproximadamente 50 anos, tem estatura mediana e trabalha como torneiro mecânico. Casado com Luísa, sempre foi um homem extremamente apaixonado. Ele idolatrava a mulher, a chamava carinhosamente de Luisinha e a via como um ser humano muito superior a ele. Não conseguia entender como uma mulher tão linda e interessante quanto ela poderia se interessar por ele.

Com o tempo, Alberto começou a perceber que a mulher já não lhe dava tanta atenção, e isso o preocupava. Luísa não parecia mais tão alegre ao lado do marido. Ele passou a acreditar que era insuficiente para fazê-la feliz, e a ideia de ter outro homem em seu lugar o enlouquecia.

Muitas vezes chamado de “corno” pelos amigos, ele permitia que a esposa dividisse sua alegria com outras pessoas. A mulher se divertia, frequentava sambas e festas. Vez ou outra, saia com a desculpa de cuidar de uma senhora, mas Alberto sabia que a verdade era outra.

A ideia de perder Luísa foi torturando Alberto aos poucos, até que ele cometeu um ato que refletiu perfeitamente seu desespero. Já em tribunal, o homem descreveu o ocorrido com a voz embargada por um romantismo incomum, mas que caracteriza o homicídio passional.

Nas palavras do réu, Luísa sentou-se em frente à penteadeira e começou a se embelezar como nunca havia feito. O homem ficou fixado pela beleza da própria mulher e, admirando-a pelo espelho, foi se aproximando lentamente. Envolveu o pescoço de Luísa com as mãos e a enforcou, tomando cuidado para que o rosto da esposa não fosse desfigurado. Após a morte da mulher, Alberto deitou-a na cama do casal e ligou para a polícia, admitindo o crime.

O cuidado que Alberto teve até mesmo para matar a esposa é, na realidade, uma característica muito comum de crimes passionais não motivados por ódio ou vingança. Conversando com ele para ter uma noção melhor do caso, chegou a me dizer que a vida de ambos havia acabado no momento em que ele a matou: a da esposa e a dele próprio.

 

A tese de defesa

Alberto foi apresentado ao júri como um assassino frio, que matou a mulher de forma mecânica (ou seja, com as próprias mãos). Além disso, ajeitou o corpo da vítima antes de chamar a polícia. O homem não demonstrou arrependimento e nunca procurou uma defesa.

Ele foi designado a mim pela juíza responsável pelo caso. Meu papel foi procurar minimizar a duração da pena, mostrando ao júri que, ainda que tivesse cometido um crime daquela natureza, Alberto era atormentado por um nível surreal de paixão.

Durante o processo, procurei apresentar ao júri a outra face de Alberto para que pudessem enxergá-lo com outros olhos.

Não se trata de justificar o crime, mas sim mostrar que a motivação importa e deve ser levada em conta na sentença. Meu trabalho enquanto advogada criminalista é garantir que todas as pessoas tenham direito a um julgamento justo, independentemente do que estão sendo acusadas.

 

O veredito

A princípio, o promotor pediu que o crime fosse encaixado somente como hediondo. Após a defesa, a decisão do júri qualificou o homicídio como privilegiado/hediondo, motivado por relevante valor moral. Ou seja, por sentimentos muito fortes e particulares que muitas vezes fogem à nossa compreensão, e não motivado por simples vingança de um homem traído. A hediondez somente permaneceu em relação ao sufocamento da vítima.

Alberto foi condenado à pena de 8 anos em regime fechado. Ele não permitiu que eu apelasse contra o veredito, aceitou e cumpriu sua pena. Ao final, prontificou-se a ser preso no instante em que saiu a sentença, mas seu pedido de prisão só seria protocolado depois. Ele aguardou em casa por dois meses até que foi intimado a comparecer à delegacia para ser recolhido.

Em momento algum, Alberto atribuiu alguma culpa à vítima, diferentemente de outros casos de feminicídio – tipo de homicídio motivado por misoginia, que é aversão ou ódio a mulheres.

A aceitação da condenação e da pena revela ainda mais uma característica do homicídio passional. O réu busca alívio para seu tormento.Para isso, aceita, inclusive, enfrentar as consequências legais de seus atos.

 

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Violência doméstica: terá defesa a mulher que mata o parceiro?

 

Por Jacqueline Prado Valles*

Segundo levantamento do governo federal, a maior parte dos casos de violência contra a mulher é cometida por homens próximos às vítimas, sejam eles parceiros atuais ou ex-companheiros. A taxa de homicídios de mulheres no país, inclusive, é uma das maiores do mundo: 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres.

A violência dentro dos lares, porém, pode ser muito maior do que os números apontam. Isso porque somente uma em cada quatro mulheres brasileiras denunciam seus agressores, de acordo com números oficiais do Human Rights Watch. E quando denunciam, não são raras as situações em que as denúncias dão em nada – dado o acúmulo de processos no Judiciário.

A consequência direta disso é que muitas dessas mulheres, vítimas constantes da violência, acabam fazendo justiça com as próprias mãos.

 

Teria defesa uma mulher que mata o parceiro?

Já defendi alguns casos em que a situação foi exatamente essa, mas um dos que mais me marcaram foi de uma mulher, moradora de um bairro periférico de São Paulo, que assassinou o marido enquanto ele dormia.

O caso ganhou repercussão nacional, mas não pelo crime em si, e sim pelo contexto: o marido a agredia fisicamente praticamente todos os dias e abusava sexualmente da filha mais nova, uma bebê de poucos meses de vida.

A mulher, que será chamada de C. neste artigo para ter sua identidade preservada, fez a denúncia diversas vezes mas nunca foi atendida. Um dia, a polícia recebeu um telefonema de sua casa: era ela, admitindo o crime e colocando-se à disposição das autoridades.

Havia um corpo, motivação e autoria: o suficiente para justificar a prisão. Ela, então, foi presa em flagrante e permaneceu sob custódia do Estado por 23 dias.

A Promotoria Pública, ciente da situação e da lei, ofereceu a possibilidade de enquadrar C. em homicídio privilegiado – condenação com 8 anos de reclusão, uma pena menor em comparação a casos de homicídio qualificado – quando o caso já estivesse em julgamento perante júri popular. Nossa defesa, porém, entendeu que esse acordo não seria justo e decidimos, então, apresentar nossa tese para que os jurados tivessem, assim, uma melhor interpretação do caso.

 

Tese da defesa: omissão do Estado

Nosso principal argumento foi mostrar aos jurados a situação que C. estava vivendo e de que forma o Estado falhou ao não responder às inúmeras denúncias feitas por ela.

Não cabia o argumento de legítima defesa, pois para isso seria necessário que C. estivesse vivenciando um perigo no momento em que cometeu o crime. Não foi o caso: ela esperou o marido dormir para apunhalá-lo – o que, por si só, é tido como crime cruel, em que a vítima é morta sem chance de se defender.

Descrevemos o contexto: C. morava numa casa muito pequena, em um bairro extremamente pobre e afastado da capital paulista, com o marido e seis filhos. Ele era alcóolatra, a agredia fisicamente e abusava sexualmente da filha mais nova. Na casa não havia nenhum celular e o telefone mais próximo ficava a mais de um quilometro de distância – que era a distância que ela precisava percorrer para chamar a polícia e denunciar o marido.

Ela fez isso em mais de uma ocasião, mas a polícia nunca atendeu aos seus chamados.

A omissão do Estado, portanto, era evidente. Se a polícia tivesse agido e prendido o marido, o crime nunca teria acontecido.

Fora isso, também alegamos que C. era ré primária, não representava perigo algum para sociedade e havia, inclusive, entregue-se voluntariamente para as autoridades – o que mostra por si só sua intenção em colaborar com as investigações, com disposição para responder às perguntas e sem tentar fugir das consequências de seus atos.

Diante da situação, o júri optou por inocentar C. das acusações. Hoje ela está bem, recuperando-se e começando uma nova vida.

 

*Artigo escrito por Jacqueline Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados

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