As redes sociais transformaram radicalmente a maneira como informações são disseminadas e opiniões são formadas. Informações preliminares, muitas vezes imprecisas ou incompletas, se espalham em questão de minutos
Como advogada criminalista com mais de três décadas de experiência em Tribunal do Júri, tenho observado com crescente preocupação o fenômeno do chamado ‘tribunal da internet’ e seu impacto potencialmente devastador sobre o direito a um julgamento justo no Brasil.
As redes sociais transformaram radicalmente a maneira como informações são disseminadas e opiniões são formadas. Em casos criminais de alta repercussão na imprensa, essa mudança tem consequências profundas. Informações preliminares, muitas vezes imprecisas ou incompletas, se espalham em questão de minutos, na ânsia de satisfazer a demanda por clicks.
Essa urgência pela divulgação de informações ‘em tempo real’ reforça opiniões precipitadas, enquanto conteúdos online permanecem acessíveis indefinidamente, perpetuando narrativas iniciais, mesmo que posteriormente refutadas.
O ‘tribunal da internet’ frequentemente ‘condena’ ou ‘absolve’ réus muito antes de qualquer procedimento legal formal. Isso cria um ambiente de pressão social que pode influenciar indevidamente os potenciais jurados e destruir reputações. E aqui precisamos reforçar que o corpo de jurados é composto por cidadãos comuns, convocados aleatoriamente. São manicures, padeiros, garis, gerentes de banco, empresários: qualquer cidadão brasileiro pode ser convocado para o júri.
Um dos aspectos mais alarmantes deste cenário é a falta de mecanismos legais eficazes para proteger os jurados da contaminação pela comoção pública. Esta lacuna legal coloca em risco um dos pilares fundamentais do sistema de júri: a imparcialidade. Jurados expostos a uma enxurrada de opiniões e “fatos” não verificados podem, mesmo que inconscientemente, formar prejulgamentos difíceis de serem superados durante o julgamento.
No Brasil, os jurados são investidos de uma enorme responsabilidade. Durante o processo, o juiz pergunta se ele assume o compromisso de julgar os casos com imparcialidade. Esse compromisso, no entanto, levanta questionamentos práticos. A imparcialidade é um conceito desafiador, para dizer o mínimo. Cada pessoa traz consigo um conjunto de experiências que molda seu pensamento e sua forma de encarar o mundo. Mesmo que formalmente se comprometa a evitar influências externas ou preconceitos, mensurar a verdadeira imparcialidade ou ausência de preconceito continua a ser um desafio, pois não há forma de controlar isso.
O sistema norte-americano utiliza a prática de questionar os jurados sobre seu conhecimento prévio e possível viés em relação ao caso, uma abordagem que poderia enriquecer nosso processo. Em ambos os casos, não há qualquer garantia de que os réus sejam submetidos a um júri totalmente isento.
Um dos pontos mais críticos deste cenário é que o corpo de jurados só terá contato com os aspectos técnicos do caso durante o julgamento. Na maior parte dos casos, durante o decorrer de uma investigação, a imprensa e o público não têm acesso ao inteiro teor do processo. Laudos periciais, relatórios de investigação e detalhes de depoimentos não são frequentemente revelados. Isso acontece durante o julgamento. A defesa tem pouco espaço para apresentar o caso para a opinião pública. Nesse cenário, as nuances legais e circunstâncias que compõem o caso podem ser ofuscadas por narrativas simplificadas disseminadas online.
Evidências cruciais, que poderiam mudar a percepção do caso, são apresentadas tardiamente no processo. A defesa enfrenta o desafio hercúleo de desconstruir narrativas já solidificadas na mente dos jurados e da opinião pública. Esta situação compromete seriamente o direito constitucional à ampla defesa e constitui um desafio significativo ao sistema de Justiça brasileiro. Esse é um dos grandes obstáculos impostos pela disseminação das redes sociais e o Direito precisa se adequar a esses novos tempos.