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Artigos Valles na Imprensa

O tribunal da internet e seu impacto no júri popular

As redes sociais transformaram radicalmente a maneira como informações são disseminadas e opiniões são formadas. Informações preliminares, muitas vezes imprecisas ou incompletas, se espalham em questão de minutos

Como advogada criminalista com mais de três décadas de experiência em Tribunal do Júri, tenho observado com crescente preocupação o fenômeno do chamado ‘tribunal da internet’ e seu impacto potencialmente devastador sobre o direito a um julgamento justo no Brasil.

As redes sociais transformaram radicalmente a maneira como informações são disseminadas e opiniões são formadas. Em casos criminais de alta repercussão na imprensa, essa mudança tem consequências profundas. Informações preliminares, muitas vezes imprecisas ou incompletas, se espalham em questão de minutos, na ânsia de satisfazer a demanda por clicks.

Essa urgência pela divulgação de informações ‘em tempo real’ reforça opiniões precipitadas, enquanto conteúdos online permanecem acessíveis indefinidamente, perpetuando narrativas iniciais, mesmo que posteriormente refutadas.

O ‘tribunal da internet’ frequentemente ‘condena’ ou ‘absolve’ réus muito antes de qualquer procedimento legal formal. Isso cria um ambiente de pressão social que pode influenciar indevidamente os potenciais jurados e destruir reputações. E aqui precisamos reforçar que o corpo de jurados é composto por cidadãos comuns, convocados aleatoriamente. São manicures, padeiros, garis, gerentes de banco, empresários: qualquer cidadão brasileiro pode ser convocado para o júri.

Um dos aspectos mais alarmantes deste cenário é a falta de mecanismos legais eficazes para proteger os jurados da contaminação pela comoção pública. Esta lacuna legal coloca em risco um dos pilares fundamentais do sistema de júri: a imparcialidade. Jurados expostos a uma enxurrada de opiniões e “fatos” não verificados podem, mesmo que inconscientemente, formar prejulgamentos difíceis de serem superados durante o julgamento.

No Brasil, os jurados são investidos de uma enorme responsabilidade. Durante o processo, o juiz pergunta se ele assume o compromisso de julgar os casos com imparcialidade. Esse compromisso, no entanto, levanta questionamentos práticos. A imparcialidade é um conceito desafiador, para dizer o mínimo. Cada pessoa traz consigo um conjunto de experiências que molda seu pensamento e sua forma de encarar o mundo. Mesmo que formalmente se comprometa a evitar influências externas ou preconceitos, mensurar a verdadeira imparcialidade ou ausência de preconceito continua a ser um desafio, pois não há forma de controlar isso.

O sistema norte-americano utiliza a prática de questionar os jurados sobre seu conhecimento prévio e possível viés em relação ao caso, uma abordagem que poderia enriquecer nosso processo. Em ambos os casos, não há qualquer garantia de que os réus sejam submetidos a um júri totalmente isento.

Um dos pontos mais críticos deste cenário é que o corpo de jurados só terá contato com os aspectos técnicos do caso durante o julgamento. Na maior parte dos casos, durante o decorrer de uma investigação, a imprensa e o público não têm acesso ao inteiro teor do processo. Laudos periciais, relatórios de investigação e detalhes de depoimentos não são frequentemente revelados. Isso acontece durante o julgamento. A defesa tem pouco espaço para apresentar o caso para a opinião pública. Nesse cenário, as nuances legais e circunstâncias que compõem o caso podem ser ofuscadas por narrativas simplificadas disseminadas online.

Evidências cruciais, que poderiam mudar a percepção do caso, são apresentadas tardiamente no processo. A defesa enfrenta o desafio hercúleo de desconstruir narrativas já solidificadas na mente dos jurados e da opinião pública. Esta situação compromete seriamente o direito constitucional à ampla defesa e constitui um desafio significativo ao sistema de Justiça brasileiro. Esse é um dos grandes obstáculos impostos pela disseminação das redes sociais e o Direito precisa se adequar a esses novos tempos.

*Matéria publicada originalmente no Portão Estadão

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Tecnologia impõe novos desafios à cadeira de custódia das provas digitais

Na era da deepfake, em que a evolução da inteligência artificial permite criar vídeos e áudios falsos, a Justiça brasileira enfrenta um desafio gigante: a análise de provas digitais.

A cadeia de custódia é um conceito fundamental no Direito Processual Penal e está intimamente ligada aos princípios do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, previstos no artigo 5º da Constituição Federal. O instrumento foi criado para garantir ao acusado o acesso a toda informação relacionada à prova apresentada, podendo contestá-la, apresentar contraprovas e questionar os métodos empregados na análise do elemento probatório.

Em 2019, o Pacote Anticrime introduziu uma série de medidas para garantir a integridade das provas desde a sua coleta até a sua apresentação em juízo. Conforme o artigo 158-A do Código de Processo Penal, a cadeia de custódia envolve a identificação de todos os itens de prova, detalhando como foram coletados, transportados e armazenados. Este processo é essencial para assegurar que as provas não sejam adulteradas e que sua autenticidade seja mantida.

A falta de cumprimento adequado dessa cadeia compromete a integridade das provas e, consequentemente, a justiça dos processos penais. Isso é especialmente grave na análise de provas digitais. Diferentemente de provas físicas, como uma faca com vestígios de sangue, as provas digitais podem ser facilmente manipuladas. Mensagens de e-mail, conversas de WhatsApp, áudios e outros dados digitais são editados e frequentemente transferidos entre dispositivos sem o devido cuidado com a preservação da integridade da prova. A prática comum de tirar prints de telas e repassar mensagens compromete a validade dessas provas, pois não há garantia de que não foram alteradas.

Para deixar essa situação ainda pior, essas provas raramente passam por perícias para atestar sua veracidade. Um dos maiores obstáculos para a correta análise de provas digitais é a baixa quantidade de peritos criminais oficiais.

Analógico X Digital

Enquanto os criminosos já estão na era da inteligência artificial que faz atores de Hollywood falar português sem conhecer o idioma, a formação dos operadores do direito, incluindo juízes, promotores e advogados, ainda é predominantemente voltada para a era do papel. Não há uma formação educacional adequada para lidar com as complexidades das provas digitais. Isso resulta em uma lacuna significativa no sistema Judiciário, que não está preparado para enfrentar as nuances das evidências digitais.

A falta de cumprimento da cadeia de custódia e a insuficiência de peritos criminais têm consequências graves para a justiça. Provas digitais mal preservadas podem levar à condenação de inocentes ou à absolvição de culpados. Além disso, a desigualdade socioeconômica é exacerbada, pois réus mais afortunados podem contratar peritos particulares e gastar fortunas na confecção de laudos para contestar provas, enquanto réus pobres não têm acesso a esses recursos. Isso cria um desequilíbrio no sistema judicial, onde a capacidade de defesa é diretamente influenciada pela condição financeira do réu.

Para que o processo penal tenha credibilidade, é fundamental que o Estado invista na formação e contratação de peritos digitais. Esses profissionais são essenciais para garantir que as provas digitais sejam coletadas, preservadas e analisadas de acordo com os requisitos legais. Sem esse investimento, o sistema judicial continuará a falhar na sua missão de proporcionar Justiça.

*Jacqueline Valles é mestre em Direito Penal, professora de Direito Penal, membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) e possui mais de 30 anos de experiência no Tribunal do Júri

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Como a aparência do réu pode influenciar os jurados

O direito a um julgamento justo e isento é um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. É a base sobre qual se sustenta a Justiça. No caso do Tribunal do Júri, diversos fatores podem influenciar a percepção dos jurados e, consequentemente, o veredicto final. Entre esses fatores, destaca-se a vestimenta do réu e o uso de algemas durante o julgamento.

Estudos em criminologia e psicologia apontam que uso de uniforme de presídio e de algemas produzem um estigma e podem influenciar os jurados. Quando um réu é apresentado ao júri vestindo roupas de presidiário, a imagem transmitida é de culpa pré-estabelecida. Essa visualização pode influenciar negativamente os jurados, que podem inconscientemente associar a vestimenta à culpabilidade do réu.

A primeira impressão visual tem um impacto significativo na formação de opiniões e julgamentos. Algemas são frequentemente associadas a criminosos perigosos e podem criar uma imagem de ameaça e culpabilidade. Essa percepção pode influenciar os jurados a favor da condenação, mesmo que as evidências apresentadas não sejam conclusivas.

Portanto, permitir que o réu use roupas civis durante o julgamento é uma medida essencial para evitar preconceitos e garantir um julgamento justo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado de forma clara sobre a questão. Recentemente, o STJ anulou julgamento em que os réus foram obrigados a comparecer ao tribunal com roupas de presidiário, reconhecendo que tal prática viola o princípio da presunção de inocência e compromete a imparcialidade do júri. A notícia provocou uma série de reações de indignação e reclamações nas redes sociais.

O princípio da presunção de inocência é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal. Todos os indivíduos são considerados inocentes até que se prove o contrário. Qualquer prática que possa comprometer essa presunção, como a apresentação do réu em roupas de presidiário ou o uso injustificado de algemas, deve ser evitada para garantir um julgamento justo e isento.

Independentemente das reclamações nas redes sociais, a igualdade perante a lei é um princípio fundamental que deve ser observado em todos os julgamentos. Todos os réus, independentemente de sua condição social, econômica ou jurídica, têm o direito de serem tratados de maneira igualitária. Isso inclui a garantia de que não serão submetidos a práticas que possam prejudicar sua defesa ou influenciar negativamente a percepção dos jurados. A lei é a mesma para todos.

*Jacqueline Valles é jurista, mestre em Direito Penal e membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) e possui mais de 30 anos de experiência no Tribunal do Júri.

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Lei impede que relatório da CPI seja ignorado pelo MP

Artigo escrito por Jacqueline Valles

O artigo 46 do Código de Processo Penal coloca fim àquela máxima de que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Brasil, termina em pizza. O artigo permite que, se após 15 dias o Ministério Público (MP) e a Procuradoria Geral da República (PGR) permanecerem inertes ao após receberem o relatório da CPI, um advogado legalmente constituído por qualquer cidadão possa ingressar com uma ação penal privada subsidiária da pública e assuma e condução do processo.

Esse instrumento é excepcional, mas de grande valia para a sociedade, pois o direito do cidadão em ter a aplicação da lei penal, inclusive tomando as rédeas da ação criminal se o Ministério Público não agir em tempo, é um direito fundamental da Constituição, conforme o artigo 5º, inciso LIX.

O MP, responsável por denunciar os investigados pela CPI sem foro privilegiado, e a PGR, a quem cabe processar os que têm foro privilegiado, como o presidente da República e seus três filhos, podem até permanecer inertes diante do relatório divulgado pela CPI da Covid nesta quarta-feira, mas isso não significa que o processo pode ficar parado ou esquecido.

Diante do recebimento do documento, os órgãos podem se manifestar determinando a denúncia ou o arquivamento. Se não fizerem nada nesses 15 dias, qualquer pessoa ou entidade pode ingressar com uma ação penal privada subsidiária da pública. Diante disso, o MP ou a PGR pode dar continuidade à ação ou pode acompanhá-la como fiscal da lei.

O CPP garante, ainda, que após os titulares da ação penal publica, ou seja, os representantes do Ministério Publico assumirem o processo, o advogado que entrou com a ação penal privada pode ingressar como assistente de acusação para atuar de maneira autônoma como parte acusadora e pleitear o que entender justo e necessário para o desfecho do processo acusatório.

O relatório final pede o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro por nove crimes supostamente cometidos durante a gestão da pandemia (crime de epidemia com resultado morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação e crimes contra a humanidade). Somadas, as penas chegam a 40 anos de prisão. Outro crime sugerido no relatório é o de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo), que enseja a abertura de processo de impeachment.

O documento pede ainda o indiciamento de outras 65 pessoas, entre elas, três filhos do presidente que exercem mandato no Legislativo. O relatório, que ainda precisa ser aprovado no Senado por maioria simples, pede o indiciamento de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e Carlos Bolsonaro (Republicanos) por incitação ao crime, conforme previsto no artigo 286 do Código Penal.

Vale lembrar que a CPI não tem o poder de punir os investigados mas, para a Justiça brasileira, o seu relatório equivale ao de um inquérito policial. O Ministério Público e a Procuradoria Geral da República devem analisá-lo, apresentando a denúncia, arquivando o processo ou solicitando investigações complementares, que devem ser feitas pela Polícia Civil ou Federal.

O Código de Processo Penal permite, ainda, que a PGR se responsabilize por todas as acusações, como aconteceu no caso do Mensalão. Nesse caso, todos os réus, mesmo os que não tenham foro privilegiado, poderão ser julgados pelo STF. Para isso, a PGR precisa fazer uma solicitação formal para unir os processos. Se isso não acontecer, cada promotor no seu estado pode ingressar com ações contra os réus individualmente.

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Não pode haver dúvidas para a condenação de PMs no massacre do Carandiru e estas serão analisadas pelo STF

Defesa alega que condenação contraria o princípio constitucional da individualização da pena

As condenações de 74 policiais militares pela ação que resultou na morte de 111 presos do complexo penitenciário Carandiru em 1992 deverão ser analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nesta quarta-feira, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) restabeleceu as condenações ocorridas entre os anos de 2013 e 2014. “As defesas dos agentes argumentam que eles agiram no cumprimento do dever e em legítima defesa e invocam o desrespeito ao princípio da individualização da pena, previsto na Constituição Federal”, afirma a jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles.

A criminalista explica que, segundo a Constituição, uma pessoa deve ser condenada com base no seu caso concreto, analisando todas as suas particularidades. “No caso do Carandiru, essa análise seria viabilizada por meio de exame pericial comprovando a origem dos disparos que vitimaram os detentos. Assim, seriam condenados apenas os policiais que participaram ativamente das mortes”, comenta a jurista.

Nenhum policial está preso pela participação na ação e todos continuarão respondendo ao processo em liberdade. Em 2018 as condenações, que chegam a 600 anos de prisão, foram anuladas pelo Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, que entendeu que os PMs haviam sido condenados de forma contrária às provas nos autos. “O TJ entendeu que a denúncia contra os policiais não individualizou as penas, conforme prevê a Constituição. E quando isso não é feito, não se pode condenar”, afirma Jacqueline.

A advogada explica que a condenação é questionada porque não há provas materiais da autoria dos disparos que acertaram as vítimas. Segundo o processo, na época dos fatos “houve impossibilidade técnica de realização da perícia”. “Se a perícia fosse feita, seria possível identificar a autoria e a condenação não seria facilmente anulada. Como isso não ocorreu, foi usado o artigo 29 do Código Penal para condenar todos que participaram da ação. Mas a figura do concurso de pessoas só pode ser usada se estiver comprovado que a pessoa que acompanhava o autor de um crime conhecia e compartilhava a intenção criminosa”, explica.

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As investigações e o assassinato de reputações

* Jacqueline Valles

O inquérito policial, a fase inicial de uma investigação, é sigiloso. Nessa etapa são feitas as primeiras investigações e diligências sobre uma denúncia ou um indício de crime. Essa apuração preliminar não resulta, necessariamente, em denúncia no Ministério Público. Em média, apenas cerca de 10% dos inquéritos instaurados pela Polícia Federal resultam em denúncia, só para citar o exemplo de uma instituição. Muitas investigações morrem do mesmo jeito que nasceram, sem identificar autoria e materialidade.
O sigilo de uma investigação, preconizado pelo Código de Processo Penal (CPP), serve não só para resguardar a pessoa que está sendo investigada, mas para que também não haja interferência na logística do objeto investigado e em seu resultado.
Muitas vezes, investigações incipientes são divulgadas pelas polícias judiciárias atendendo a critérios políticos e midiáticos. Para evitar essa prática, o Pacote Anticrime impôs leis e penas para proteger as pessoas nas instâncias iniciais das apurações. A mera investigação, é bom ressaltar, não significa que a circunstância de um crime já esteja delineada, nem que a sua autoria esteja verificada. E quando há divulgação precoce, passamos por cima de um dos pilares do Direito, a presunção de inocência.
As consequências para quem é alvo dos inquéritos são duras. A opinião pública julga antes mesmo de a denúncia ser aceita ou não. E a reputação dos investigados sofre danos que, muitas vezes, são irreversíveis.
Não se trata, evidentemente, de esperar que os casos sejam julgados para atender ao interesse público. O livre acesso a informações é um dos pilares básicos da democracia, mas é preciso que haja a materialização do crime e autoria. Quando jogamos para a sociedade uma informação frágil no início de apuração, estamos desinformando ao apresentar uma situação vaga com muitas dúvidas e lacunas.
É por isso que o inquérito policial é sabiamente sigiloso e a ação penal, pública. A partir do momento que se encerrou uma investigação, em que haja materialização de crimes e autorias, os fatos podem se tornar públicos.
Fazer valer o que determina o CPP é imprescindível à democracia e ao acesso à informação livre de ingerências e manipulações políticas.

*Jacqueline Valles é advogada criminalista, mestre em Direito Penal

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Avanço da Covid nos presídios reforça necessidade de liberar presos

Nesta semana a Justiça concedeu a prisão domiciliar a um dos maiores traficantes internacionais de drogas do país, Suaélio Martins Leda, que estava preso em Mirandópolis, no Interior de São Paulo. O preso é hipertenso e faz parte do grupo de risco para a Covid-19. De acordo com a determinação do desembargador França Carvalho, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ele passará os próximos 60 dias cumprindo a pena em sua casa.

A jurista e Mestre em Direito Penal, Jacqueline Valles, afirma que, por mais chocante que a notícia possa parecer, do ponto de vista jurídico, ela está correta. No início da pandemia do novo coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deliberou a recomendação para que os presos que pertençam ao grupo de risco da doença cumpram a pena em casa até o final da pandemia, seguindo uma série de normas de segurança. A medida vale apenas para aqueles que não tenham cometido crimes violentos. “Por mais danoso que seja o tráfico de drogas, não se trata de um crime cometido com violência e, portanto, condenados pelo crime são beneficiados pela medida”, explica a jurista.

Marcado pela superlotação e pela incapacidade de oferecer atendimento médico a todos os custodiados, o sistema prisional brasileiro não suporta a necessidade de isolamento de doentes e nem dos detentos que fazem parte do grupo de risco. “O Estado é o responsável pela vida dos custodiados. Se ele não tem capacidade para isolar os presos que estão no grupo de risco, tem que encontrar outra maneira de garantir a integridade física deles, por isso o CNJ redigiu essa recomendação”, completa Jacqueline.

Jacqueline reforça que a medida tem tempo limitado e serve não apenas para proteger a saúde dos presos, mas para evitar que eles se transformem em vetores de contaminação para a sociedade. “Um doente dentro de uma cela transmite a doença não só para os outros detentos, mas também para os profissionais do sistema penitenciário que atuam nos presídios. Em um momento em que o Brasil soma mais de 2 milhões de contaminados e mais de 84 mil mortes, todo cuidado tem que ser adotado, é um problema de saúde pública”, argumenta.

A preocupação da jurista se traduz em números: de acordo com o boletim divulgado pelo CNJ no dia 22 de Julho, nos últimos 30 dias, o número de contaminações dobrou e o de mortes cresceu 33% nas prisões brasileiras. Desde o início da pandemia, foram 13.778 casos confirmados da doença, com 136 mortes. “Desde o início da pandemia, 65 servidores do sistema prisional morreram e outros 5.113 foram contaminados. Estamos diante de um grave problema de saúde pública, pois esses servidores transmitem a doença para suas famílias e as pessoas com as quais convivem”, finaliza a jurista.

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Os crimes de Bolsonaro que Moro revelou, segundo criminalistas

Crimes de responsabilidade, falsidade ideológica, advocacia administrativa e até obstrução de Justiça. Estes são alguns dos crimes que, segundo criminalistas ouvidos pela reportagem, o presidente da República, Jair Bolsonaro, pode ter cometido, caso comprovadas as acusações de Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública.
Uma investigação já foi requerida pelo procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, após as declarações do exministro Sergio Moro, que acusou Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal para obter acesso a informações sigilosas.

O objetivo é apurar se foram cometidos os crimes de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra. Conforme os indícios apontados por Aras, tanto Bolsonaro quanto o próprio Moro serão alvos do inquérito.
Um dos autores da peça jurídica do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff diz que, os fatos apurados sobre a petista eram, “de longe, menos graves”, do que as acusações de Moro contra o atual presidente.

Impeachment e crime de responsabilidade

A princípio, advogados ouvidos pelo jornal O Estado de S. Paulo elencam crimes de responsabilidade supostamente cometidos por Bolsonaro. Para Conrado Gontijo, criminalista, doutor em Direito Penal e Econômico pela USP, “confirmadas as graves acusações de Moro, Bolsonaro deverá sofrer processo de impeachment, por ter agido de forma incompatível com a dignidade do cargo”.
“Não bastasse isso, há indicações de que o Presidente Jair Bolsonaro praticou crime comum, ao assinar decreto com a falsa informação de que a exoneração de Valeixo teria sido ‘a pedido’. Mais uma grave situação, que evidencia a total falta de capacidade de Bolsonaro ocupar a cadeirante Presidente do país”, afirma.

Para Flávio Henrique Costa Pereira, especialista em Direito Eleitoral, “os fatos revelados são graves e mostram completo desrespeito à probidade do cargo do presidente”. “Em termos jurídicos, os fatos, comprovados, são contundentes e configuram crime de responsabilidade a ensejar o impeachment do presidente. Quando elaborei, juntamente com Janaína Paschoal e Miguel Reale Junior, o pedido de impeachment de Dilma Rousseff, os fatos eram, de longe, muito menos graves do que esses.”

O criminalista Guilherme Cremonesi afirma que “a conduta do presidente deixa muito clara esses crimes de responsabilidade na medida em que ele tenta não só intervir na nomeação do chefe da PF, mas como, de certa forma, manipular o trabalho feito pela PF”.

“A par de quaisquer críticas ao juiz e ao ministro, a posição do presidente de intervir politicamente na Polícia Federal, por conta da preocupação com os inquéritos em andamento que podem atingir seus filhos, é absolutamente contrária aos princípios de Sérgio Moro. Mas, mais que isso, ficou explícito em seu pronunciamento que Bolsonaro poderá responder por crime de responsabilidade a depender do uso que fará de sua influência nos departamentos de Policia Federal, incluindo as superintendências estaduais. Entendo que os atos do presidente em relação à pandemia podem configurar crime e a interferência direta nas atividades de investigação da Polícia também pode configurar crime de responsabilidade”, avalia Sylvia Urquiza, especialista em Direito Penal.

Obstrução à Justiça

Em artigo ao blog, o criminalista Dante D’Aquino afirma que a fala de Moro sobre eventual interferência política aponta para um “comportamento que pode configurar o crime de obstrução de justiça, previsto na lei 12.850/2013, em seu artigo 2º, parágrafo 1º, pois quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal, pratica a conduta proibida pela mencionada lei”.

“Claro, deverão estar presentes os demais elementos constitutivos do crime, nesse caso, a existência de um inquérito no STF que apure a formação de uma organização criminosa, situação que, no entanto, parece estar preenchida pelo Inquérito 4.781/2019, que tramita no Supremo Tribunal Federal sob a presidência do Ministro Alexandre de Moraes”, avalia.

O criminalista Guilherme Cremonesi ainda avalia que Bolsonaro pode ter cometido o crime “na medida em que ele tenta influenciar o trabalho da PF porque ele está preocupado com investigações que possam respingar nele próprio ou em sua família”.

“Buscar aparelhar politicamente a Polícia Federal, para interferir no curso de investigações, poderá ser responsabilizado criminalmente. A Lei de Organização Criminosa, por exemplo, prevê pena de reclusão, de 3 a 8 anos, para quem impede ou, de qualquer forma, embaraça investigação de infração que envolva organização criminosa”, lembra Conrado Gontijo.

Falsidade Ideológica

No pronunciamento em que anunciou a saída do governo, o ex-ministro denuncia que a sua assinatura eletrônica no decreto de exoneração do diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, foi fraudada e diz que não houve exoneração a pedido, como o documento presidencial publicado mostra.

“Isso é crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 299 do Código Penal. O texto do artigo diz que é crime ‘omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante'”, explica a mestre em Direito Penal Jacqueline Valles.

Vera Chemim, advogada constitucionalista, mestre em Direito Público Administrativo pela FGV , o caso também configura falsidade ideológica. “É, definitivamente, um governo voltado acima de tudo ao protecionismo familiar em detrimento do Estado brasileiro. Retornamos ao velho Império e às antigas políticas da velha República ao invés de progredirmos politicamente. Trata-se realmente do retorno da Corte Imperial”, analisa.

“Falsidade ideológica na medida em que o presidente afirma que teria exonerado diretor-geral da PF a pedido dele próprio, o que não é uma verdade”, diz Guilherme Cremonesi.

Advocacia administrativa

Caso as denúncias de Moro sejam confirmadas em investigação, o presidente pode ser autuado com base no artigo 321 do Código Penal, que prevê até três meses de prisão para quem “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”.

“O crime de advocacia administrativa fica caracterizado quando Moro afirma que o presidente queria ter acesso a relatórios de inteligência de investigações da PF. Esses relatórios não são compartilhados nem com toda a Polícia Federal e não podem ser acessados por ninguém, nem pelo presidente da República”, diz Jacqueline Valles.

Até o fechamento deste texto, a reportagem não havia obtido um posicionamento dos citados.

*Texto publicado originalmento no portal UOL Notícias

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PF tem obrigação de investigar denúncias de Moro sobre Bolsonaro

A Polícia Federal tem autonomia prevista no artigo 144 da Constituição Federal para investigar as denúncias do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre condutas que teriam sido cometidas pelo presidente Jair Bolsonaro e que caracterizariam crimes comuns. “A Polícia Federal tem a sua autonomia investigativa amparada pela Constituição Federal e pelo estado democrático de direito. O STF e o Ministério Público Federal também podem solicitar a instauração dos inquéritos para apurar as condutas criminosas que teriam sido cometidas pelo presidente Bolsonaro”, afirma a jurista e mestre em Direito Penal, Jacqueline Valles.

No pronunciamento em que anunciou a saída do governo, o ex-ministro denuncia que a sua assinatura eletrônica no decreto de exoneração do diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, foi fraudada e diz que não houve exoneração a pedido, como o documento presidencial publicado mostra. “Isso é crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 299 do Código Penal. O texto do artigo diz que é crime ‘omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante’”, explica a mestre em Direito Penal.

PF tem obrigação de investigar denúncias de Moro sobre Bolsonaro

Caso as denúncias de Moro sejam confirmadas em investigação, o presidente pode ser autuado com base no artigo 321 do Código Penal, que prevê até três meses de prisão para quem “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”. “O crime de advocacia administrativa fica caracterizado quando Moro afirma que o presidente queria ter acesso a relatórios de inteligência de investigações da PF. Esses relatórios não são compartilhados nem com toda a Polícia Federal e não podem ser acessados por ninguém, nem pelo presidente da República”, completa Jacqueline.

Ainda segundo o discurso de Moro, Bolsonaro teria confirmado que a troca na diretoria da Polícia Federal seria uma interferência política e que o presidente pretendia colher informações diretamente com o diretor-geral e com superintendentes da PF. “A PF tem autonomia constitucional para investigar e o presidente não tem prerrogativa para interferir. Isso pode ser classificado como crime”, detalha Jacqueline.

A jurista aponta, ainda, que o discurso de Moro relatou práticas do presidente que podem ser enquadradas em crimes de responsabilidade, como a interferência política e acesso a investigações da Polícia Federal e do Supremo. “Os crimes de responsabilidade, todos os atos que atentem contra a democracia, a paz e os órgãos da União, são aqueles que dão base para o pedido de impeachment do presidente”, diz.

Prevaricação

A jurista explica que o diretor-geral da PF, independentemente de ser indicado ou não pelo presidente da República, tem obrigação legal de investigar as denúncias feitas por Moro, sob pena de cometer crime de prevaricação. “Para investigar crimes comuns, a PF precisa submeter sua investigação à Câmara dos Deputados, que analisa e remete para o Procurador Geral da República, que encaminha o processamento da investigação para o STF. Se a PF não investigar, isso caracteriza crime de prevaricação”, completa a jurista.

*Artigo Publicado originalmente no portal SB24Horas

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Tragédia de Brumadinho revela a sutil diferença entre dolo eventual e culpa consciência

Você imagina os engenheiros e outros funcionários da Vale agindo deliberadamente para provocar a morte de 252 pessoas na tragédia de Brumadinho? Acha normal que alguém vá trabalhar e decida não tomar essa ou aquela atitude, aceitando normalmente o risco de matar centenas de pessoas?

É essa a conclusão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a tragédia de Brumadinho. O relatório final pede o indiciamento por homicídio doloso e lesão corporal dolosa, quando há intenção de cometer o crime, de 22 diretores da Vale, engenheiros e terceirizados, em virtude do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG).

É preciso fazer uma análise técnica sobre o assunto. A situação do dolo eventual apontada no relatório imputa aos dirigentes uma intenção previamente deliberada de provocar mortes.

Mas, quando digo que os funcionários tinham todas as condições para saber que aquela barreira estava mal instalada, mal vigiada e, ainda assim, não tomaram as devidas medidas de proteção, eu estou afirmando: “vocês foram extremamente omissos com a segurança”. E isso, segundo a lei, é um crime culposo.

Esse tipo se configura quando o agente não tem a intenção de cometer um crime, mas age de forma negligente. Para punir esse tipo de conduta há, no Código Penal, a figura do homicídio culposo.

A pessoa comete crime de duas maneiras: ou ela tem a intenção, o que chamamos de dolo, ou comete sem intenção, de forma culposa. Há duas vertentes para o dolo: o direto, com uma ação deliberada, ou eventual, na qual se assume o risco de cometer um crime e, mesmo assim, não se adota alguma providência contrária. Nesse caso, a pessoa já tem em mente o chamado ‘animus necandi’, a intenção de cometer um delito. O dolo eventual continua, no final do trajeto, apontando para a intenção, ainda que indireta.

Analisando tecnicamente os fatos, não é possível imputar o dolo aos funcionários. E isso não quer dizer que eles não possam ou não devam ser responsabilizados. Existem dois tipos de culpa, a que chamamos de inconsciente, quando não há a dimensão de que se está agindo de forma a praticar um delito, e a consciente, quando existe a consciência de que há um risco em sua conduta ou ação negligente.

A linha entre a culpa consciente e o dolo eventual é muito tênue. No caso em questão, está claro que se trata de uma culpa consciente. Para o magistrado ou promotor público acusar o agente de dolo eventual, no entanto, é indispensável identificar no sujeito, desde o início de suas ações, a vontade de, neste caso, provocar mortes e destruição. E não é possível imputar a esses funcionários e dirigentes da Vale a intenção de matar 252 pessoas.