Amor materno: protecionismo além da justiça

Por Jacqueline Prado Valles*

 

Com a recente data comemorativa do Dia dos Pais, as emoções familiares ficam ainda mais frescas em nossa memória sentimental. Aproveitando esse gancho, nesse artigo falarei sobre um dos amores mais incondicionais: de pais ou mães. Mas, ao contrário do que propõe a data sazonal, vou tratar em especial do amor materno.

Diferente do artigo anterior, neste não darei característica de um réu, mas de uma mãe capaz de qualquer coisa para proteger seu filho ou filha. Para exemplificar, vou relatar um caso que reflete perfeitamente o grau de protecionismo que uma mãe pode ter com um filho ou filha.

 

Luiza: um caso de extremo amor materno

Para preservar a identidade de minha cliente, aqui a chamarei por Luiza. Mãe de duas meninas, morava com seu marido e as filhas. O marido da filha mais velha, de 23 anos, completava a lista de moradores. Em um dia, supostamente, Luiza e o genro se desentenderam, e a mulher disparou 2 tiros contra o rapaz.

Fui procurada pelo marido de Luiza para assumir a defesa do caso. Ele me contou que a esposa era ré confessa do homicídio, e estava presa há 3 meses em uma penitenciária feminina.

Comecei a visitar Luiza e investigar melhor a situação. Logo notei muitas incoerências naquela história. Até não conseguia dar muitos detalhes da briga com o genro, se perdia em seus próprios relatos. Tudo o que dizia com convicção era: “Fui eu, eu matei meu genro”. A cliente alegava legitima defesa, mas não havia uma história que sustentasse o pedido. Ela estava, nitidamente, mentindo.

Outro fato que me intrigou durante a investigação foi o nome da filha mais velha – a viúva – não aparecer entre as visitas permitidas pela acusada. Quando questionei esse ponto, esposa e marido diziam que a filha, além de muito atarefada, estava deprimida. Pediram para que eu não a procurasse. Eu, que não enxergava em Luiza uma assassina, começava a suspeitar de estar diante de um caso em que o amor materno tenha levado uma mãe a atitudes extremas, como assumir a culpa de um crime que não cometeu.

A explicação de Luiza  sobre como pegou a arma do crime também não era nada convincente. Segundo ela, pertencia ao genro, que era vigilante. Ela disse ter pego a arma da cintura do rapaz. Em um primeiro momento, disse que pegou a arma durante a briga. O discurso mudou quando questionei essa possibilidade, já que a força física de um homem de 1,90 cm, estatura aproximada da vítima, era superior à dela. Dessa vez, alegou que ele estava distraído.

Sempre que assumo a defesa de algum crime, principalmente familiar, procuro absorver, ao máximo, o ambiente daquela pessoa. Família, vizinhos, pessoas próximas. Todo mundo é ouvido. Nesse caso, não poderia ser diferente.

Além da família, fui atrás dos vizinhos que ouviram os tiros e chamaram a polícia. Segundo eles, o genro de Luiza, que aqui chamaremos de Alexandre, era um homem que se envolvia com outras mulheres e também conhecido pelo grande consumo de bebidas alcoólicas – o que resultava em frequentes discussões na casa.

 

A defesa

Mesmo com incansáveis investidas para que Luiza dissesse a verdade, a cliente continuava insistindo em uma história pouco provável. O pedido de Legitima Defesa jamais seria aceito pelo júri, pois não havia relatos ou provas para sustentá-lo.

Em um dos últimos encontros antes do julgamento, disse à Luiza que, se assim quisesse, ela poderia alegar Legitima Defesa perante o júri. Eu, no entanto, não usaria dessa defesa, pois era incompatível com a realidade jurídica.

Mesmo diante dos meus argumentos, Luiza se mostrava inflexível. Dizia que confessaria o crime. Como reflexo de seu desespero, alegou que cumpriria o tempo que fosse necessário, ainda que o crime fosse classificado como Homicídio Qualificado Hediondo. Nesse caso, o resultaria seria uma pena de 12 a 18 anos. A acusada chegou a dizer que, se eu não alegasse legitima defesa, preferiria que nada fosse feito.

 

O julgamento

Em clima de extrema tensão, começou o julgamento. Durante seu pronunciamento, o promotor questionou a história apresentada pela acusada. Notando a contradição no discurso da ré, o promotor pediu o encaixamento do crime no Art. 121 § 2º, II no Código Penal, homicídio por motivo fútil.

Chegado o momento da defesa, pedi a absolvição de Luiza, devido à falta de provas que pudessem ir contra as acusações, atestando a possível inocência de minha cliente. Nesse momento, Luiza começou a se exaltar, falar alto, ficar nervosa. Em um ato de desespero, voltou a afirmar que havia cometido o assassinato.

Os integrantes do júri também sentiam que a história de Luiza estava mal contada, e que alguns fatos haviam sido omitidos. Eu, que já desconfiava de que o amor materno de Luiza    estava levando-a a assumir um crime que não havia cometido, percebi que os jurados compartilhavam das minhas suspeitas. Em dado momento, um jurado chegou a questionar o porquê de ela estar se acusando, e a quem estaria protegendo.

Em minha tréplica, aproveitando da dúvida do júri, insisti na absolvição de Luiza, levantando a falta de provas.

 

 

O veredito

Como advogada, eu confio muito nos critérios de decisão dos jurados. Ainda que composto por pessoas sem conhecimentos técnicos de Direito, o júri tem uma grande sabedoria da realidade humana. É sempre possível detectar alguma sensibilidade nas tomadas de decisão. Após a resolução desse caso, tive ainda mais certeza disso. 

Antes do veredito, ao  júri se faz os seguintes questionamentos: a vítima morreu em decorrência do crime? Luiza foi responsável pelo homicídio? Luiza teria assassinado o genro por um motivo fútil? E foi a resposta a esta última pergunta que fez a diferença no julgamento: não. Na decisão dos jurados, não houve discussão ou futilidade, contradizendo a história contada por Luiza. Além disso, a decisão ia contra a ideia de que o genro de Luiza teria sido pego de surpresa, também em contrapartida com o relato da ré.

O júri sabia que as alegações de Luiza não eram verdadeiras, mas fizeram a justiça que acreditavam ser plausível. Minha cliente foi condenada por Homicídio Simples, e destinada à pena de 6 anos em regime semiaberto. Uma pena cumprida por deixar seu amor materno se sobressair diante de toda e qualquer circunstância.

 

A verdade por trás do caso

Passado o julgamento, durante o cumprimento do regime semiaberto, Luiza e o marido foram até o meu escritório. Foi nesse momento que minhas suspeitas se confirmaram.

Durante uma discussão com Alexandre, a filha do casal pegou a arma e disparou contra o peito do próprio esposo. Desesperada, ligou para a mãe, que, devido ao seu incondicional amor materno, assumiu a culpa do crime. Luiza teria pedido para a filha esconder a arma em um lugar específico. Para afastar suspeitas, também pediu que a filha saísse de casa. Pouco depois, já na presença da polícia, a mãe chegou, revelando a localização da arma, e assumindo a autoria do crime.

E foi o mesmo amor materno que motivou a mulher a assumir um crime que nunca cometeu, que a levou ao meu escritório naquele dia. Luiza fez um apelo para que não fossem atrás no testemunho da filha, e a deixassem em paz. Eu a tranquilizei, dizendo que, uma vez acusada, o caso estava encerrado, e não seria reaberto para procurar novos culpados.

Só assim aquela mãe pode ir embora e cumprir a pena que lhe foi resignada, revelando um grande alívio por poder proteger a filha.

 

*Artigo escrito por Jacqueline Prado Valles, advogada criminalista com mais de 20 anos de carreira e sócio-proprietária do escritório Valles&Valles – Sociedade de Advogados

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