Estelionato sentimental: Fui enganada por ex-namorado e perdi R$ 30 mil

*Materia Publicada Originalmente no portal Universa/UOL

A administradora Tatiana Carli Mota, 37, conheceu o homem que agora processa por danos morais e furto em meados de 2020. “Começamos a namorar e, já no início, ele pedia dinheiro emprestado dizendo que me pagaria, mas não pagava. Os valores foram aumentando”, conta. Em março, se separaram, e ficou um prejuízo que passa dos R$ 30 mil.

Tatiana foi vítima do chamado estelionato sentimental, quando uma pessoa finge uma situação de envolvimento amoroso para se aproveitar da outra. No caso dela, o ex pedia dinheiro emprestado por estar desempregado e dizia que iria ressarci-la, o que nunca acontecia. Para pressioná-la a emprestar cada vez mais dinheiro, lançava mão de manipulação e abusos psicológicos.

“Ele dizia ter mudado a vida para estar comigo e, por isso, falava como se fosse minha obrigação lhe dar dinheiro. Também me fazia acreditar que eu era uma pessoa problemática e só ele poderia gostar de mim. Eu cedia para manter a relação”, relembra. “Estava envolvida, insegura e confusa mentalmente. ”

O estelionato sentimental se caracteriza pela situação em que uma pessoa se aproveita da confiança da outra, conquistada por meio de uma relação afetiva, para extorquir dinheiro e bens materiais. É diferente de um empréstimo ou uma ajuda financeira concedida ao parceiro. “No estelionato, há uma repetição desse comportamento de extorsão e algum tipo de manipulação recorrente, que induza a vítima a dar o dinheiro”, ressalta o advogado Nardenn Souza Porto, especialista nesse tipo de caso.

Segundo os advogados ouvidos por Universa, o golpe aumentou durante a pandemia. “Até 2020, recebia dois casos por mês. Agora, é pelo menos um pedido de ajuda por dia”, afirma Porto. Um dos fatores para esse crescimento, ele diz, é o maior uso de redes sociais no período, carência e vulnerabilidade das vítimas.

A advogada criminalista Jacqueline Valles diz atender pelo menos um caso desses por mês, relatando um aumento de 50% de demanda na pandemia:

As vítimas chegam destruídas financeira e emocionalmente e pedindo reparação financeira. Querem, pelo menos, ter o dinheiro que o agressor ficou devendo de volta”

Dizem ser bem-sucedidos, mas inventam algo para pedir dinheiro

Diego Aparecido Alves, de 29 anos, é acusado de estelionato por ex-namoradas - Reprodução/Instagram/@diegoalvesgolpista30 - Reprodução/Instagram/@diegoalvesgolpista30
Diego Aparecido Alves, de 29 anos, é acusado de estelionato por ex-namoradas

Imagem: Reprodução/Instagram/@diegoalvesgolpista30

Vítimas e especialistas afirmam que entre os argumentos usados pelos golpistas, o de que irá ressarcir o dinheiro em breve é o mais comum. Eles pedem dinheiro, transferências para pagamentos de contas e cartões de crédito emprestado. Alguns afirmam não ter uma boa condição financeira, mas outros, apesar de se dizerem bem-sucedidos, têm algum problema e precisam de ajuda. Uma vítima relata que o criminoso afirmou ter o CPF bloqueado por causa de ações judiciais e, por isso, não conseguiam fazer transferências para pagar contas, recorrendo a ela.

“Esses homens são predadores financeiros e têm um comportamento parecido: envolvem as mulheres e as fazem pensar que tiraram a moeda da sorte ao encontrar alguém tão bom, carinhoso. Depois, ele começa a pedir empréstimos, e a mulher, acreditando que é um favor que faz a alguém que ama, empresta”, explica Valles.

Apesar de não ser um crime previsto em lei, que fala apenas em estelionato simples (quando a pessoa tenta obter uma vantagem sobre a outra por meio de fraude, de mentira e induzindo o outro a erro), o estelionato sentimental é um conceito aceito pelos tribunais brasileiros desde 2015.

Golpistas” fazem vítimas em série e são expostos nas redes

Pelo menos dois casos de estelionato sentimental recentes envolvem vítimas em série e somam dezenas de denúncias. Nas duas situações, mulheres de diferentes regiões do país conseguiram se unir pelas redes sociais, criaram perfis para denunciar os golpistas e grupos no Whatsapp para prestar suporte mútuo.

Um primeiro desfecho para um deles se deu na segunda-feira (14), quando a Polícia Civil de Sergipe prendeu Diego Aparecido Alves dos Santos por estelionato contra, pelo menos, dez mulheres em cidades de cinco estados brasileiros. Santos agia de maneira similar com as vítimas: pedia o cartão de crédito delas emprestado e começava a fazer compras além do que havia sido combinado.

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A advogada Mariana Thomaz, 37, foi vítima de golpista preso após enganar dez mulheres

Imagem: Reprodução

“Às vezes, eu emprestava o cartão de maneira consentida porque, se não desse, ele fazia meu dia virar um inferno”, afirma a advogada Mariana Thomaz, 37, que o conheceu no final de 2019. Junto com outras vítimas, ela criou uma conta no Instagram para expor o agressor e os crimes dos quais relatam ter sido vítimas.

Universa, ela diz que Santos fingia ser bem-sucedido e que era ciumento.

No começo ele era prestativo, cheio de histórias muito interessantes, viajado, dizendo que era rico. Até que descobri que o sobrenome que ele usava não era o verdadeiro e que seu carro era alugado. E nossa relação começou a ficar insuportável, eu tinha que sair correndo dos lugares por causa de ciúme dele. O dano psicológico é absurdo. Fiquei depressiva, desanimada, me senti burra.

A reportagem não localizou a defesa de Santos.

Danilo de Souza Melo é acusado de enganar 15 'namoradas'; ele usava o nome da corretora de valores XP para aplicar golpes, segundo as vítimas - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Danilo de Souza Melo é acusado de enganar 15 ‘namoradas’; ele usava o nome da corretora de valores XP para aplicar golpes, segundo as vítimas

Imagem: Reprodução/Instagram

Culpa e vergonha, marcas deixadas por esse tipo de crime, também foram sentimentos que tomaram Raquel* (nome alterado a pedido da entrevistada), 35, vítima de Danilo de Souza Melo, em um caso que veio à tona em abril deste ano após 15 mulheres também o denunciarem por meio de uma conta também no Instagram. “Não tive coragem de contar para minha família, não quero fazê-los pensar que eu corri esse risco”, diz à reportagem.

Ela relata que Melo inventou uma carreira muito promissora para tentar não gerar desconfiança. “Ele dizia que estava morando em Portugal, era economista e diretor da área internacional da corretora XP Investimentos; falou que foi convidado pelo fundador da empresa para trabalhar lá, que entrou muito novo”, conta.

Comecei a desconfiar porque sempre havia desculpa para ele não cumprir as promessas, principalmente em relação a me pagar o que devia. Até que fui analisar o CPF dele e vi que já tinha sido denunciado por estelionato, por ter agido exatamente da forma como agiu comigo.

Melo responde às acusações em liberdade. Ele foi procurado pela reportagem para se manifestar, mas não respondeu às mensagens até a publicação deste texto.

“Vítima é vítima, não existe isso de ser esperta ou não”

Porto afirma que 95% de suas clientes são mulheres, de diferentes perfis. Segundo Valles, no geral as vítimas se assemelham quando o assunto é dinheiro: elas são bem-sucedidas e com estabilidade financeira. “E isso as faz sentir culpadas. São instruídas e dizem ter vergonha até de falar comigo por ter caído num golpe como esse”, afirma a advogada.

“Sempre falo: vergonha do quê? Vítima é vítima, não tem isso de mais ou menos esperta. Nesse caso, elas são induzidas a uma situação, isso é muito agressivo. E tem também as críticas e gozações das outras pessoas. Não há compaixão alguma e há uma ignorância porque não se entende que é uma relação em que houve abuso, manipulação”, diz.

Valles afirma que, mesmo em delegacias da mulher, há dificuldade em registrar boletim de ocorrência. “Já ouvi de escrivão que ‘isso era problema do casal’. Existe muito preconceito.”

Tatiana viveu exatamente isso ao tentar fazer um B.O. “Cheguei a ouvir na delegacia coisas como ‘ele fez isso para chamar sua atenção’. Ou ‘comigo eles não se metem a besta’, entre outras horríveis. Parece querer diminuir o problema, dificultar a queixa e, pior, culpar a vítima. Só consegui registrar porque estava acompanhada de minha advogada. Quem vai sem apoio volta pior e mais desamparada do que foi”, diz.

O que as vítimas devem fazer

Ainda que haja resistência por parte de algumas autoridades, os advogados orientam mulheres que possam estar sendo vítimas de estelionato sentimental a irem a uma delegacia registrar um boletim de ocorrência por estelionato, com o máximo de informações em relação ao agressor que possuírem.

“Depois disso, ela deve reunir todos os documentos que possui como prova. Sejam mensagens de Whatsapp, e-mail, boletos de pagamento, comprovantes de transferência, de extrato do cartão de crédito”, diz Porto. Com isso em mãos, a orientação é procurar um advogado ou a Defensoria Pública, para que se abra um processo e a mulher possa ser ressarcida.

O advogado afirma que já ganhou várias causas e que as chances de ressarcimento são grandes. “É comum pedirmos o bloqueio de qualquer tipo de bem desse agressor no começo do processo para garantir o cumprimento da sentença de pagamento no futuro. Muitas clientes conseguiram o dinheiro de volta”, diz.

“Mas há casos de estelionatários que não têm nada em seu nome, alegam que não tem como pagar, e aí, infelizmente, a mulher fica sem seu dinheiro, apenas com a sentença favorável, e o advogado precisa ficar atento se o condenado colocar algo em seu nome. Mas, no mínimo, isso a ajuda psicologicamente, porque a Justiça ficou ao seu lado.”

Câmara tem projeto de para tornar crime estelionato sentimental

Desde 2019, tramita no Congresso um projeto de lei que pede a inclusão do termo estelionato sentimental na lei, com aumento de pena de um a dois terços em relação ao estelionato simples, que determina prisão de um a cinco anos.

Para os especialistas, uma lei nesse sentido pode ajudar mulheres a registrarem suas denúncias, uma vez que o crime estará claramente tipificado, além de aumentar a punição nesses casos.

O PL foi aprovado em março pela Comissão do Idoso da Câmara dos Deputados, por também incluir agravamento de pena quando a vítima tiver mais de 60 anos. Agora, o texto aguarda votação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Se aprovado, segue para avaliação no plenário da Câmara e, depois, do Senado.

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