Desde o início do ano, centenas já morreram dentro de presídios no Brasil. E isso quer dizer mais sobre nosso sistema prisional do que você pensa.
Em janeiro, pelo menos três grandes massacres aconteceram dentro de presídios brasileiros. O primeiro, logo após a virada do ano, aconteceu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), onde morreram 56 presos no total. Menos de uma semana depois, a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR), registrou 33 óbitos após uma rebelião. O terceiro e último – pelo menos até a publicação deste artigo – aconteceu no sábado (14), quando 26 homens morreram na Penitenciária de Alcaçuz, localizada na Grande Natal (RN). Ao todo, o sistema carcerário brasileiro já registra mortes em estados como Amazonas, Alagoas, Paraíba, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Paraná – seja por causa de rebeliões ou por razões diversas, como a superlotação.
Mortes dentro do nosso sistema prisional não são exatamente uma novidade. No ano passado, 379 presos morreram sob custódia do Estado nas penitenciárias brasileiras – média de um por dia. Ao que tudo indica, os números de 2017 tendem a ser ainda maiores.
Todo o banho de sangue do início do ano pode ser analisado sob dois pontos de vista diferentes:
De um lado, a imprensa classifica esses massacres como um resultado direto do conflito existente entre as diversas facções criminosas atuantes no país. De outro, juristas e outros especialistas no sistema carcerário brasileiro afirmam que o Estado tem responsabilidade sobre os presos e, portanto, sobre tudo o que acontece dentro das penitenciárias também – incluindo os massacres deste ano.
Para Jacqueline do Prado Valles, advogada criminalista e sócia da Valles & Valles – Sociedade de Advogados, os acontecimentos do início deste ano têm um pouco dos dois cenários descritos acima. Ao mesmo tempo em que há, sim, um conflito entre as facções que coexistem dentro dos presídios, a ausência do Estado dentro das penitenciárias brasileiras também contribui para que a situação chegue ao ponto que chegou.
“Onde o Estado falha, a sociedade dá um jeito de se organizar, e isso também acontece dentro dos presídios”
Jacqueline do Prado Valles, advogada criminalista
Segundo Jacqueline, quando o Estado não está presente dentro dos presídios, o poder tende a cair diretamente nas mãos das facções. “Se o governo não disponibiliza médicos para atender os detentos ou transporte para levar as famílias até a cidade onde parentes estão presos, as facções vão viabilizar tudo isso”, conta ela. “Não é à toa que o PCC [Primeiro Comando da Capital, grupo original de São Paulo] tem convênio médico, odontológico, frota de ônibus e até um fundo para bancar cirurgias médicas. E tudo financiado com dinheiro do crime”.
Para ela, a falta de atendimento médico providenciado pelo governo é só um dos inúmeros problemas dentro das prisões. “O Estado falha até mesmo na garantia dos direitos fundamentais de todo indivíduo. Há presídios onde os detentos jejuam por mais de 12 horas, sem falar nas celas superlotadas com praticamente nenhuma entrada de ar”.
Ainda de acordo com a advogada, é muito comum as pessoas confundirem direitos mínimos com regalias quando se referem a presidiários. “Elas esquecem que a pena que um detento cumpre é o encarceramento, a privação da liberdade. Mas, mesmo estando preso, ele continua sendo um indivíduo que come, bebe, dorme, respira e por aí vai”, explica. “Outro exemplo são as famosas ‘saidinhas’, quando o preso é liberado para visitar a família no Natal, por exemplo. Não é uma regalia, é um direito previsto em lei para que o indivíduo que foi preso possa, aos poucos, voltar a conviver em sociedade”.
Construir presídios resolve o problema do nosso sistema carcerário?
Essa estrutura é tão profunda que, para acabar com ela, é preciso investigar e chegar até a raiz do problema. E a situação está tão crítica que “construir mais presídios para acabar com a superlotação ou até mesmo endurecer penas são medidas que não resolveriam nada, muito menos enfraqueceriam o poder das facções”, diz Jacqueline. Isso porque, quando se constrói mais celas, trata-se o efeito e não a causa do problema.
Da mesma forma, mudar a situação caótica do sistema carcerário no Brasil – cuja população é a quarta maior do mundo, com mais de 600 mil presos – também envolve o cumprimento das leis penais, que, além do encarceramento como forma de punição, também preveem a ressocialização do indivíduo após o fim da pena. E o Estado também não está presente no momento em que ele retorna à liberdade. Para a advogada, instaurar a pena de morte tampouco resolveria o problema. “É só olhar para países que têm esse tipo de pena previsto em lei”, diz. “Não é que reduziu a criminalidade, ela só aumentou”.